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Entrevista com Nikelen Acosta Witter – Parte I

Publicação:

APERS Entrevista
APERS Entrevista

Nikelen Acosta Witter é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (1997). Possui Mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999) e é Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2007). Para acessar sua tese, clique aqui. É autora de “Dizem que foi feitiço: as práticas de cura no sul do Brasil (1845-1880)” (Edipucrs, 2001) e também é escritora de ficção, com obras como “Territórios invisíveis” (Editora Estronho, 2012/ Avec Editora, 201), “Guanabara Real e a alcova da morte” (com Enéias Tavares e A. Z. Cordenonsi, Avec Editora, 2017), “Viajantes do Abismo” (Avec Editora, 2019) e “Dezessete Mortos” (Avec Editora, 2020).

Você pode falar brevemente sobre sua dissertação de mestrado e seu trabalho de doutorado, e o papel das fontes custodiadas no Arquivo Público neles?

Meu trabalho de mestrado partiu de um sumário-crime – que é o equivalente de um inquérito contemporâneo, com a diferença de que o réu ficava preso – que está entre os documentos custodiados pelo APERS. Este está inserido juntamente com os processos-crime que foram transladados para a capital em 1904.

O documento que utilizei se refere a um caso ocorrido em Santa Maria, em 1866, e tem como ré uma mulher preta, idosa, alforriada e acusada de envenenamento. Minha atenção foi atraída por uma série de detalhes que ali constavam. Primeiro, ser uma mulher alforriada, a maioria das pessoas acusadas de envenenamento, nessa época, eram escravizadas. Segundo, as características do mal-estar da vítima, uma jovem filha de lavradores da serra geral: “estranha doença”, “ataques”, regurgitamento de “lã, linhas, agulhas, barro” pelo nariz e a boca. Todas estas, características que se reputavam aos enfeitiçados em uma longa tradição de origem europeia. Por fim, os próprios testemunhos do sumário que, ao serem perguntados sobre a doença da menina, usam recorrentemente a frase “dizem que foi feitiço”.

Historiadora Nikelen Acosta Witter
Historiadora Nikelen Acosta Witter

O material que encontrei me pareceu tão impressionante à época que, com o apoio da minha orientadora Prof. Margareth Bakos, eu fiz dele o eixo central não apenas da pesquisa, mas também da escrita do trabalho. As perguntas e lacunas do documento em relação à época – como sobre a vida das mulheres, do grupo social dos lavradores das encostas da Serra Geral, as relações entre o governo do munícipio e os diferentes tipos de curadores que aí existiam, as relações entre esses curadores – eu fui cobrindo buscando outros documentos, entre eles diversos processos-crime da mesma região e época.

É bom lembrar que minha dissertação foi feita entre 1997 e 1999. Não é exatamente como se na época fosse “tudo mato” na história da saúde (risos), mas para o Rio Grande do Sul eram ainda pouquíssimos trabalhos e estes se centravam em sua maioria sobre Porto Alegre e/ou sobre o século XX. Então, as lacunas e perguntas sobre o objeto que eu me propus a estudar eram realmente grandes.

Ao findar a dissertação, ainda me intrigavam as formas como as pessoas manejavam os tratos com a doença no século XIX. Eu estava convencida de que as estruturas e lógicas eram fundamentalmente diferentes do que viemos a conhecer ao longo do século XX. Em função dessa inquietação montei meu projeto de doutorado, o qual levei a cabo no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense no Rio de Janeiro. Meu orientador André Campos, porém, acreditava ser necessário ancorar minha pergunta: “como as pessoas experienciavam a doença no século XIX?” em um fato que fosse capaz de limitar as circunstâncias em que eu faria a análise. Optei então pela pandemia de cholera morbus de 1855 e usei o período pandêmico como uma espécie de “grupo teste”, pois pelas diferenças apontadas durante a quadra epidêmica, eu poderia inferir o que era o “normal” nos períodos sem morbidade coletiva.

A documentação do APERS também foi fundamental para a compreensão dessa “normalidade”, pois era nela que as forças repressoras tentavam, com maior regularidade coibir atitudes e práticas que passavam a ser consideradas indesejáveis nos ambientes público e privado da época. Nesse ponto, os processos-crime continuaram a ser uma fonte de imenso valor.

Utilizei também uma fonte que chegou a mim de forma fortuita. Vários colegas que faziam mestrado e doutorado na mesma época, estavam trabalhando com os inventários post-mortem, e estes colegas foram generosos o suficiente para me informar sobre cartas inclusas nessas peças, bem como gastos com médicos e remédios durante o período de doença dos inventariados.

Qual a origem do interesse pelo estudo da temática?

A verdade é que a temática veio a mim mais do que a busquei. Todo o meu plano de pesquisa foi modificado e redirecionado a partir do sumário-crime que deu origem ao meu mestrado. A partir daí as questões da saúde, da doença e das práticas de cura passaram a nortear meus estudos e foram meu mote de pesquisa por uma década.

Acompanhe na semana que vem a continuidade da entrevista com a historiadora Nikelen!

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul