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Entrevista com Caiuá Cardoso Al-Alam – parte 1

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Caiuá Cardoso Al-Alam  é professor da Universidade Federal do Pampa, campus Jaguarão, desde 2011. Licenciou-se em História pela Universidade Federal de Pelotas em 2004. Defendeu seu mestrado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 2007 e seu doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 2013. É especialista nos estudos sobre a História do Brasil Império, principalmente na área da História Social da Escravidão, estudou a História das Prisões e da Polícia, e atualmente estuda o campo do Pós-Abolição na fronteira com o Uruguai. É autor de “A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857)” e um dos organizadores do livro “Clube 24 de Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-Uruguai”.

1) Caiuá, você poderia nos traçar um panorama sobre sua trajetória profissional e sobre suas pesquisas?

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite para esta entrevista. Me sinto lisonjeado em poder conversar com pesquisadores/as do APERS, que tanto admiro. Não posso deixar de fazer referência à triste conjuntura em que estamos vivendo, de um governo federal que aposta em políticas genocidas que ampliam os impactos da COVID-19, aprofundando as desigualdades sociais no país. Já são mais de 410 mil mortos e o governo continua investindo em desinformação e boicote ao SUS, inclusive omisso em relação ao acesso e ampliação das vacinas. Momento muito difícil, muito doloroso. Que impõe a nós historiadores/as, professores/as, a urgência de repensar nosso trabalho, como a nefasta imposição de retorno às aulas presenciais sem condições sanitárias para isto, e o papel enquanto sujeitos políticos em relação a esta conjuntura. Não podemos nos omitir. Mas vamos lá. Minha trajetória acadêmica começou no curso de Licenciatura em História da UFPel. Estudei lá de 2001 a 2004. Na época trabalhei com os campos da Memória, Museologia, Educação Patrimonial e a História Social da Escravidão. Em 2005, fui admitido no Mestrado de História da UNISINOS, onde fui orientado pelo generoso Paulo Roberto Staudt Moreira, pesquisador incrível, que me acolheu de uma forma muito bacana. Gosto de dizer que fiz parte de gerações de orientandos do Paulo, que acabaram reproduzindo a “fome’ pelos arquivos, na busca de narrativas históricas mais atraentes, com aguçada indignação e com a generosidade de compartilhar fontes e bibliografia. Lá, trabalhei com a pena de morte enquanto uma legislação conduzida a punir trabalhadores escravizados em específico, mas buscando entender os protagonismos de homens e mulheres negras durante a escravidão, construindo também análises sobre o policiamento e a prisão em Pelotas. Concluí a dissertação em 2007 com o título “A Negra Forca da Princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857)”. Este trabalho foi transformado em livro, sendo lançado em 2008, tendo uma aceitação bem bacana na região de Pelotas. Creio que por enfatizar reflexões que questionavam alguns pressupostos ainda muito vigentes bancados por uma perspectiva historiográfica com centralidade nas elites da cidade. Gosto muito deste texto. De certa forma, ele dialogou com todo o questionamento que diferentes gerações faziam à história da cidade, conversando, portanto, com a indignação contra um discurso histórico elitista e alienante. Posteriormente, entre 2007/2008, trabalhei em um museu comunitário da região da Lomba do Pinheiro em POA, experiência riquíssima, e depois lecionei como professor substituto no curso de Museologia da UFPel, trabalhando com as primeiras turmas daquele curso recém-criado. Em 2009, ingressei no doutorado na PUCRS com a orientação do Jurandir Malerba, o que foi muito bacana, um cara que é referência para mim e para o país nos estudos do Brasil Império. Continuei pesquisando a história da Polícia e da Prisão em Pelotas, mas busquei construir trajetórias de delegados e carcereiros, para entender as dimensões políticas e sociais destas profissões. Concluí em 2013 com a tese chamada “Palácio das misérias: populares, delegados e carcereiros em Pelotas, 1869-1889”. Na época, já estava trabalhando como professor efetivo no curso de História-Licenciatura da Universidade Federal do Pampa, Campus Jaguarão. Havia sido aprovado em concurso público no final de 2010, tomando posse em janeiro de 2011. Logo comecei a acompanhar as atividades do Clube 24 de Agosto, clube negro centenário de Jaguarão, que lutava contra o processo de leilão de sua sede, injusto, diga-se de passagem. O curso de História foi um dos tantos parceiros que esteve junto ao Clube resistindo. Aprendi muito nesta caminhada. E foi dialogando, aprendendo com a comunidade do Clube 24, que passei a pesquisar o campo do Pós-Abolição. Atualmente pesquiso o associativismo negro na fronteira do Brasil com o Uruguai. Em 2018 tivemos um momento especial, que foi junto com a Giane Escobar e a Sara Munaretto, ter organizado o livro que celebrou os 100 anos do Clube 24 de Agosto, contando com diversos/as pesquisadores/as egressos/as da UNIPAMPA. A obra foi uma encomenda do Presidente da instituição, Madruga Crespo, um cara que admiro muito. Então é isso, abro meu 11º ano de trabalho na fronteira, compondo um grupo de educadores/as da UNIPAMPA, resistindo a este governo com práticas autoritárias e privatistas, que investe no desmonte dos serviços públicos, e que tem precarizado a vida da população brasileira. E seguimos acreditando na prática e num projeto que concebe a valorização da universidade pública, gratuita e socialmente referenciada.

2) Qual foi a importância das fontes primárias custodiadas no Arquivo Público em sua trajetória, sobretudo dos processos criminais?

maio Caiua
Historiador Caiuá Cardoso Al-Alam

Foram fundamentais! Por morar e estudar no interior, minha história com o APERS começou tarde. Na época, só existiam programas de pós-graduação em torno da capital do Estado, no interior havia apenas a UPF. No início dos anos 2000, as dificuldades eram grandes. A internet era incipiente, pouco lidávamos com a perspectiva digital. Lembro que quando algum/a de nós viajava para um evento acadêmico, trazia xerox de algum livro badalado nas bibliotecas universitárias. Ou até mesmo, lembro também de comprarmos livros coletivamente e depois tirarmos xerox. Eram formas de driblar a precariedade das bibliotecas locais. E neste sentido, era difícil o deslocamento para Porto Alegre e conseguir tempo para uma estadia mais qualificada que permitisse a pesquisa em longa duração. No final da graduação, decidi estudar o funcionamento da pena de morte no país durante o século XIX em plena escravidão. Lembro que alguns me argumentaram que não existiam fontes para efetuar esta pesquisa. A Lorena Gill acolheu a proposta de orientação. Descobri, dialogando com ela e a Beatriz Loner, que os processos crimes eram uma possibilidade. Fui incentivado a buscar esta alternativa. Lembro até hoje, fui e voltei pedindo carona na beira da estrada. Pontualmente, trabalhei um processo em específico na monografia de conclusão de curso. Fui muito bem atendido pelos/as funcionários/as do APERS na época. Fichei o processo e voltei para Pelotas vislumbrando a possibilidade de continuar pesquisando com aquele tipo de fonte. Me apaixonei. Neste sentido, poucos/as estudantes do interior, pelo menos aqui de Pelotas, buscavam realizar mestrado em POA. Pois era custoso e nem todos/as tinham condições. Pontualmente alguns colegas de turmas anteriores haviam buscado este sonho. Lembro que eu, Claudia Tomaschewski e Lucio Xavier, acreditamos neste sonho coletivamente. Construímos nossos projetos e fomos realizar a seleção, com nossas plaquinhas, também de carona na BR-116. Tive a felicidade de ser aprovado na UNISINOS, e sendo orientado pelo Paulo Moreira, me apaixonei definitivamente pelos processos crimes e todas as suas potencialidades. No mestrado e no doutorado, foquei no uso dos processos, e me tornei um visitante assíduo do APERS. Descobri uma Pelotas enquanto um território negro, africano. Uma cidade encruzilhada, espaço de passagem dos diferentes tipos de trabalhadores e trabalhadoras, com acúmulo de um certo cosmopolitismo no mundo do trabalho. A região estava conectada com diferentes territórios e portos, o que evidenciou uma experiência histórica muito mais complexa do que o discurso que vislumbrava apenas uma narrativa das elites do lugar. Isso acabou potencializando outros estudos que pude realizar com outros/as colegas. Destaco o livro realizado com Natália Pinto e Paulo Moreira chamado “Os Calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes (RS, Pelotas, 1835)” hoje em segunda edição e disponível online gratuitamente, que partiu de dois processos crimes salvaguardados pelo APERS, e, com o próprio Paulo, o artigo “‘Já que a desgraça assim queria’ um feiticeiro foi sacrificado: curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais (Pelotas - RS, 1879)”, que também parte de um processo crime do Arquivo. Portanto, foi a partir dos processos crimes que encontrei elementos para construção de uma História Social, evidenciando diferentes protagonismos antes negligenciados.  Uma outra coisa muito bacana que o APERS me proporcionou, foi o convívio com os/as colegas na sala de pesquisa. Os cafés do intervalo, as chegadas e partidas do lugar, me fizeram aprender muito. O intercâmbio de ideias, documentos, análises, livros, é um importante ponto para pensar a perspectiva da generosidade entre historiadores e historiadoras, e isto o cotidiano no APERS possibilita. Tenho muita saudade da turma.

 3) A que você atribui seu interesse pela História Social da Escravidão?

Meu interesse pela História Social da Escravidão se deu por dois vieses: trajetória militante no campo da memória dialogando/aprendendo com os movimentos sociais negros; e a influência da atuação da professora Beatriz Loner e o Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. Tive ótimos educadores/as de História no ensino médio, o que me mobilizou para pensar análises do passado de forma crítica e também me projetaram para a vontade de lecionar. Durante a graduação, trabalhei no conhecido Museu Municipal Parque da Baronesa em Pelotas. Na época, a prefeitura da cidade, numa forma de qualificar os espaços de atuação das políticas de cultura, investiu em parcerias com a UFPel, contratando bolsistas e estagiários. Fui parar no Museu da Baronesa junto com um conjunto de pessoas maravilhosas. Lá, vigorava a tradicional história da cidade, elitista, de barões e baronesas, sem conflitos, sem luta de classes, sem qualquer menção à escravidão. O grupo de pessoas que trabalharam lá de 2001 a 2004, investiu em outras histórias, nos contrapontos, nas provocações e fundamentalmente na memória dos diferentes protagonismos da comunidade negra da cidade. Foi bem bom, pois investimos em diferentes elementos de atuação do Museu, desde as exposições, políticas de salvaguarda de acervo, pesquisa histórica, transformamos as narrativas. Mas o fundamental foram os projetos de educação patrimonial, que focavam as escolas municipais, pessoas da terceira idade e turmas noturnas de escolas estaduais. Foi um barato, pois trabalhávamos com teatro e educação popular, nas linhas da pedagogia crítica de Paulo Freire e do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Trabalhamos fundamentalmente abordando os protagonismos de homens e mulheres negras no século XIX, pois o Museu carregava uma experiência de um casal de barões, que teriam feito a “graça” de libertarem seus escravizados. Hoje, sabemos que foi naquele infame sistema de contratos, vinculando a liberdade em anos seguintes ao “bom comportamento” no servir, que vislumbrava no final de contas o acúmulo de capital simbólico por parte das elites e a continuidade do uso descarado da mão-de-obra escravizada. Para isto, realizamos muitas parcerias onde buscávamos ensinamentos e provocações, dialogando com referências fundamentais dos movimentos sociais negros, como o Mestre Batista. O Sopapo, atabaque rei, foi um vetor de nosso trabalho. Encontramos o primeiro Sopapo artesanalmente feito pelo Mestre, em uma das oficinas do projeto CABOBU, coordenado pelo Giba Giba, no depósito da Secretaria de Cultura. Mestre Batista recuperou o instrumento, e o colocamos na exposição permanente do Museu. Isso ecoou de forma contundente pois virou uma provocação importante para tensionar narrativas. Tivemos também a parceria da Yalorixá Mãe Nara de Xapanã, que nos evidenciou diferentes possibilidades de se pensar estratégias de abordagem contra a intolerância religiosa e os saberes das religiões de matriz africana. Não posso deixar de evidenciar a grande parceria que tivemos com o ODARA, nas figuras da Greice Ribas e Maritza Freitas, que articulavam oficinas de dança Afro, fundamentais pedagogicamente e que eram lindas demais. Ouvindo e dialogando com estas pessoas, e trabalhando com Educação Popular e História, acabei me interessando pela História Social da Escravidão. Entendia que era uma emergência pesquisar o assunto e construir contrapontos. Na faculdade de História, participei no primeiro ano de curso, de um projeto de pesquisa com a professora Beatriz Loner, que buscava entender o processo abolicionista no Rio Grande do Sul. Comecei pesquisando no jornal A Federação. Logo depois, Beatriz ainda ofertou uma disciplina específica para trabalhar o tema. Ela, certamente também foi uma influenciadora importante para a minha trajetória de pesquisa.

 Leia na próxima quarta-feira a segunda parte da entrevista com Caiuá Cardoso Al-Alam!

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