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Entrevista com Caiuá Cardoso Al-Alam – parte 2

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana passada, o historiador Caiuá Cardoso Al-Alam compartilhou conosco um pouco de sua trajetória profissional, seus interesses de pesquisa e o papel das fontes do Arquivo Público (Parte 1). Confira a continuidade da entrevista!

4) Atualmente, existe um grande debate na sociedade gaúcha a respeito do caráter racista do hino estadual. Como especialista no estudo da escravidão, e considerando os resultados que encontrou em suas pesquisas, como você encara essa questão?

Acho o debate fundamental. O assunto a respeito do hino do Estado, traduz uma tradição da forma como a sociedade rio-grandense lida com a pauta do racismo e o protagonismo de homens e mulheres negros e negras no Rio Grande do Sul. A muito custo, e por iniciativa dos movimentos sociais e culturais negros, a imagem do Estado como sendo essencialmente branco tem sido questionada. Desde os primeiros trabalhos intelectuais no século XIX, que tentaram sistematizar uma leitura do passado da região, passando pelos referenciais do IHGB na região, como o Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro, depois os intelectuais republicanos que buscaram aproximar nossas tradições às experiências do Prata, chegando à fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul em 1920, onde a perspectiva lusitana da nossa história se torna preponderante, o discurso histórico negou e invisibilizou o protagonismo dos povos originários, e de africanos/as e seus descendentes. Depois de minimizarem a presença, buscaram ainda criar um discurso que legitimaria o desaparecimento destas comunidades no passado. O que reforçou as leituras que se seguiram durante o século XX, atreladas à ideia da democracia racial dos pampas, aprofundada pela ditadura empresarial militar e que negou qualquer conflito e preconceito racial no Estado. Isso tudo fundiu uma perspectiva ufanista de um Estado carregado de uma pretensa moral “justa”, calcada numa ideia de liberdade. Imagine, o gaúcho, a imagem sociocultural do Estado predominantemente forjou-se branca, com utopia de tudo que o significado do europeu no sentido dos valores positivos da manifestação do ser branco, aquilo que hoje principalmente os/as pesquisadores/as negros/as nomeiam de branquitude/branquidade, vigorou e vigora nos CTGs, nas escolas, até hoje. Oliveira Silveira, importante intelectual negro, em toda sua trajetória pesquisou e enfatizou a contundente influência africana naquilo que chamamos de cultura rio-grandense, ou cultura gaúcha. Negada, por muito tempo pela historiografia, hoje sabemos que a experiência da escravidão foi usada em larga escala em todo o Estado, inclusive no pampa gaúcho e até mesmo nas cidades conhecidas como de “imigrantes europeus”. Em todo o Rio Grande do Sul, trabalhadores/as africanos/as protagonizaram diferentes tipos de experiências, que legaram saberes, costumes, modos de viver, ver e sentir o território sulino. O Rio Grande do Sul, sem dúvida nenhuma, é também um território negro. E dizer tudo isto, torna a análise do questionamento sobre o hino do Estado extremamente importante. Não só a estrofe “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo” é escrachante, um deboche quando pensamos na condição de homens e mulheres negros e negras submetidos à escravidão. Mais direto e objetivo em relação a forma como as elites pensavam esta condição e estas pessoas, impossível. Mas também devemos refletir qual era o lugar da comunidade negra naquele projeto de 1835. A forma como a República Rio-grandense lidou com a abolição, a negligenciando enquanto projeto político, o massacre de Porongos e inclusive a continuidade de utilização da mão-de-obra escravizada pelas diferentes lideranças no após Tratado de Ponche Verde, denotam que a ambição de cidadania era restritiva. Não é um debate anacrônico. Se observarmos o quanto os intelectuais republicanos rio-grandenses vinculados às elites pensantes do IHGRio Grande do Sul continuaram a discutir cidadania, em oposição nacional/regional, nas mesmas linhas dos seus textos, veremos que continuaram invisibilizando a história do povo negro e indígena. A história do Rio Grande do Sul, é marcada por uma insistente luta por uma liberdade, que estava vinculada a um projeto de cidadania, mas para poucos, restritiva, na lógica do direito à propriedade privada e liberdade política para as elites, racializada fundamentalmente, que seguiu reproduzindo-se estruturalmente com restrições ao acesso à educação da população negra. O que acabou demandando contrapontos como as campanhas intensas dos movimentos sociais negros pelo acesso educativo à sua comunidade, desde o século XIX até hoje! Quando questionamos o hino do Rio Grande do Sul, não é uma frase e o conteúdo explícito dela apenas. Questionamos a representatividade histórica deste Estado. É uma batalha política da memória! E é evidente que se torna um conflito, um incômodo, pois questionamos o discurso elitista, branco e pretensamente europeu, que está corroborado em toda ritualização identitária do Rio Grande do Sul. É difícil mesmo, pois é uma luta estrutural, contra um projeto de poder intelectual e cultural de longa duração imposto pelo/ao Estado.

maio Caiua
Historiador Caiuá Cardoso Al-Alam
5) Seu trabalho, e os de outros pesquisadores sobre crime, criminalidade e policiamento, coloca em diálogo referenciais teóricos heterogêneos, como Foucault e Thompson. Do seu ponto de vista, quais são as vantagens e os cuidados ao realizar o cruzamento de matrizes teóricas diversas?

Entendo que os avanços teóricos que tivemos na caminhada da construção do conhecimento histórico, se deram devido a diferentes aproximações. O que, por exemplo, evidenciou questionamentos às serializações, grandes temporalidades, pelo entendimento que a pesquisa histórica não se encerrava em uma suposta verdade proposta em dados objetivos de uma fonte. Passamos a interagir de forma reflexiva, questionadora de tudo aquilo que se apresentava como evidência ou narrativa. E. P. Thompson defendeu a aproximação com outras áreas como a Antropologia, pensando e testando categorias, conceitos, e até mesmo modelos interpretativos na pesquisa histórica. Foi assim que em abordagens com centralidade em categorias como a da cultura, nos legou possibilidades para entender especificidades nisso que chamamos de classe operária. O que torna isto referencial, é a forma como utilizamos, como entendemos que conseguiremos responder a determinada análise histórica. Entendo as divergências entre os dois autores, são compreensões sobre análise da relação passado/presente diferentes, com Thompson enfatizando a perspectiva do sujeito que protagoniza o passado, que está inserido/interagindo num processo histórico. Já Foucault, sem esta pretensão de encontrar estes sujeitos, ou melhor, apostando na desconstrução destes, das verdades que constituem esta compreensão processual da História, sem um sentido de fato. No meu caso, Foucault foi importante para entender lógica da sociedade disciplinar, mais especificamente a prisão como modelo punitivo, enquanto um projeto político situado e construído historicamente. O quanto este regime de verdade em torno da ideia punitiva e corretiva da prisão, tornou-se um consenso. Destaco também que o entendimento de poder por parte do autor, de forma pulverizado, reproduzido nas diferentes relações sociais, e não apenas imposto de modo institucional, foi fundamental para minha abordagem sobre o chamado “cotidiano policial” no século XIX. O que me fez observar questões como hierarquias construídas a partir de perspectivas de identidades regionais, por exemplo, quando da nomenclatura de policiais locais para soldados do Exército, que eram chamados pelos primeiros de “baianos”, o que acusava em tom pejorativo uma diferença local/estrangeiro, mas também vínculos ao questionamento da honra, vinculando-os a ideia da falta de coragem. O “baiano”, considerado todo indivíduo que viesse do nordeste do país, também era relacionado aos indivíduos que não sabiam montar, uma zombaria que vinculava a falta de destreza com situações de perigo, de força. Está aí um elemento histórico importante para pensar possibilidades da construção da xenofobia em relação ao nordeste e que passou pelo mundo do trabalho. No caso de E. P. Thompson, foi a perspectiva da História Social que utilizei como recurso, nas ideias de experiência histórica e naquilo que chamamos de agência, no protagonismo, no manejo que os trabalhadores das instituições de policiamento e prisão faziam no seu cotidiano, tensionados entre uma suposta ordem institucional e aqueles valores que compartilhavam enquanto grupos populares que buscavam neste tipo de labuta, uma situação mínima de sobrevivência, já que era extremamente vulnerável esta tarefa. Entendo que são recursos analíticos, sendo fundamental o/a pesquisador/a apontar os limites destas aproximações em seus textos.

6) Mais recentemente, você tem se aproximado do GT Emancipações e pós-Abolição, a partir do trabalho com o Clube Negro 24 de Agosto, em Jaguarão. Você pode nos contar um pouco dessa experiência? Você encara essa atuação como um trabalho de História Pública?

Conheci o 24 de Agosto, clube negro centenário de Jaguarão, mais de dez anos atrás. Na época, como já comentei aqui, enfrentava uma situação delicada e injusta de leilão da sua sede. Desde então, diversas parcerias foram realizadas. O 24, como afirmam pessoas de sua comunidade, é um grande “quilombo” que articula diferentes setores. Nós do curso de História da UNIPAMPA buscamos ser um destes parceiros na intenção de reverter o leilão e também construir outros tipos de parcerias que pudessem ser importantes para o Clube quanto para a universidade. Neste sentido, projetos de pesquisa, atividades de rodas de memórias e palestras, assim como estágios, foram sendo realizados em parceria com o Clube. O 24, na insistência da pessoa do Presidente Neir Madruga Crespo, reivindicou a consciência da constituição do Clube enquanto um espaço da salvaguarda da memória de sua própria comunidade. Nisto, a UNIPAMPA tem também ajudado, onde o curso com diferentes protagonistas, buscou nestes 10 anos, e continua realizando, a higienização e salvaguarda daquele acervo. Disso surgiram também importantes práticas educativas, como a Oficina Territórios Negros, que percorre a cidade dialogando sobre o protagonismo da comunidade negra local e seus territórios. A comunidade do 24 de Agosto é de uma força impressionante. Nesse processo todo, apoiados por diferentes setores, que contou com agentes públicos e movimentos sociais e culturais, o Clube tornou-se o primeiro clube negro do Estado a ser considerado Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul. O que “monumentalizou” a expressão de sua luta contra aquele leilão, revertendo-o. Desde então, o Clube foi formador junto com o curso de História, de muitos/as estudantes, fazendo surgir expressivas gerações de professores/as, pesquisadores/as, que carregam os aprendizados junto a esta comunidade negra da fronteira. Neste sentido, não tenho dúvidas que se trata de um trabalho de História Pública, pois busca em parceria com a comunidade do Clube, salvaguardar, refletir e educar entorno das experiências históricas, que evidenciaram a luta contra o racismo e por cidadania plena, efetiva ao povo negro. Essa é a história do 24 de Agosto: uma luta centenária contra o racismo, por acesso à educação, à constituição de sociabilidade, e o reforço dos laços de resistência daquela comunidade negra da fronteira do Brasil com o Uruguai. Foi assim que me aproximei dos estudos do campo do Pós-Abolição, desenvolvendo reflexões e pesquisas das tradições e histórias protagonizadas pela comunidade do 24. E assim, via convite das amigas Melina Perusatto e da Fernanda Oliveira, acabei me aproximando do GT Emancipações e Pós-Abolição, que é um coletivo muito interessante, principalmente no núcleo do Rio Grande do Sul, onde tenho aprendido muito. Coloco-me na tarefa da escuta, do aprendizado e tento levar isto nas pesquisas e orientações que realizo. Em Jaguarão existiu um associativismo negro contundente. Vinculado às experiências das comunidades negras uruguaias, como demonstraram Juliana Nunes e Fernanda Oliveira, o povo negro da região de Jaguarão constituiu diferentes tipos de experiências. Pude analisar em minhas pesquisas, a luta por letramento e acesso à educação, a constituição dos clubes negros da cidade, o movimento operário, o carnaval, o futebol, a imprensa negra, enfim, objetos de pesquisa que estão na agenda do campo do Pós-Abolição. Muitos/as egressos/as do nosso curso, continuam suas pesquisas, o que tem posicionado Jaguarão enquanto um referencial importante para estes estudos. Inclusive a UNIPAMPA tem se evidenciado como referencial aos programas de pós-graduação do Estado. Nossos/as egressos/as são muito bem recebidos/as nos PPGHs. O que evidencia a importância dos investimentos nas universidades públicas, que acabam provocando gerações a repensarem suas experiências históricas. Atualmente, temos constituído vinculado ao Laboratório de História Social e Política, o Grupo de Estudos Sobre Escravidão e Pós-Abolição, que tem buscado referência no GT Emancipações e Pós-Abolição, e iniciativas muito bonitas como o GEPA [Grupo de Estudos sobre o pós-Abolição] da UFSM. Isto é fundamental para o fortalecimento destas narrativas históricas que buscam centralidade na escuta e aprendizado das experiências históricas das comunidades negras da região, como também no fortalecimento da experiência da formação discente na caminhada da graduação. A universidade, ainda tem muitos pressupostos elitistas, que a colocam distante das comunidades onde estão inseridas, mas no microcosmo de uma região do interior, como a que está situada Jaguarão e Arroio Grande, observo que a atuação dos diferentes cursos do campus faz uma grande diferença. Neste sentido, é fundamental seguirmos defendendo as ações afirmativas e condições dignas de permanência dos/das estudantes negros/as. Tem sido uma mudança fundamental a adoção desta política no Brasil, sem dúvida precisamos continuar a defendê-la nestes tempos pandemônicos deste governo elitista. Defender o projeto da universidade pública e gratuita, com garantia de acesso e permanência, é um caminho fundamental para a conquista de uma sociedade cidadã. Que perceba suas desigualdades e que construa um pacto para combatê-las. Agenda política fundamental. Tarefa árdua, mas que como expressa a resistência centenária do Clube 24 de Agosto e de sua comunidade, é preciso coragem e perseverança. Saravá!

 

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