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Entrevista com Carina Martiny – Parte II

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APERS Entrevista
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Na semana anterior, a historiadora Carina Martiny nos apresentou a temática de seu mestrado e de seu doutorado, e explicou as opções teórico-metodológicas envolvidas na escolha da trajetória de Júlio de Castilhos como meio de acesso à formação do Estado Republicano. Confira a continuidade!

Como você avalia a influência da micro-história sobre seu trabalho?

Posso afirmar que a micro-história se tornou referencial teórica e metodologicamente em meu trabalho. O mestrado foi o momento em que tive a primeira aproximação com o método, derivada de algumas leituras e discussões realizadas durante o curso. Mas foi no Doutorado que a micro-história se tornou essencial para o trabalho. A realização de mais leituras sobre o método e de trabalhos que o utilizavam; assistir a palestras de Giovani Levi e mais as constantes discussões que fiz com meu esposo, Max Ribeiro, que também utiliza a metodologia em seus trabalhos; tudo isso permitiu que eu fizesse um trabalho de micro-história. Compreender o processo de construção da República reduzindo a escala de análise nas ações e relações de uma liderança republicana – Júlio de Castilhos – permitiu acessar práticas e compreender facetas do processo político do período que não seriam perceptíveis em uma escala macroscópica.

De onde surgiu o interesse por estudar uma figura como Júlio de Castilhos, de certa forma já exaustivamente abordado por uma historiografia mais tradicional?

Em 2009, quando eu estava finalizando a pesquisa para o mestrado me deparei com uma notícia em um jornal de circulação estadual: o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul estava disponibilizando para pesquisa o Arquivo Particular Júlio de Castilhos, contendo ampla correspondência pessoal do político. Como na época meu interesse era a política de âmbito municipal, fui até o arquivo para consultar o fundo buscando possíveis cartas remetidas de São Sebastião do Caí. Encontrei algumas, mas o que mais me chamou a atenção era a riqueza do fundo documental, composto por 79 maços com uma documentação bem diversa mas, sobretudo, com correspondência pessoal que tratava de questões da política – tanto estadual quanto federal e relativa aos mais diferentes municípios do estado. Ao escrever o projeto de doutorado, lembrei da riqueza daquele acervo e, assim, se consolidou a ideia de trabalhar com a figura de Júlio de Castilhos.

Obviamente que a opção por centrar o estudo em um indivíduo que já recebeu muita atenção por parte de uma historiografia mais tradicional faz com que muitos pensem, ou até me indaguem, sobre a validade de “mais um” trabalho sobre Castilhos. Quanto a isso, sempre fui muito tranquila em demarcar meu objeto de estudo: eu não estava estudando Castilhos, mas sim o processo de formação de uma liderança republicana em fins do século XIX e início do XX e o próprio processo de construção da República no Brasil. Não se tratava de uma análise biográfica de Castilhos. Através dele que eu busquei compreender processos mais amplos, seguindo os fundamentos da micro-história italiana, como apontei anteriormente. Além do mais, uma coisa que sempre me incomodava em relação aos trabalhos existentes sobre Castilhos é que eles o apresentavam como a grande liderança republicana do estado em fins do XIX. E de fato ele era. Mas não apontavam como ele se tornou essa liderança. Eu queria compreender como um jovem que durante o Império não ocupou qualquer cargo político pôde se tornar essa grande liderança na década de 1890.

Você pesquisou fontes cartoriais referentes à família de Castilhos custodiadas pelo Arquivo Público. Contudo, essas não são as fontes mais usuais no estudo da história política, ao menos da história política mais tradicional. Em que a investigação desse tipo de documentação pôde contribuir para estudos como o seu?

Se na história política mais tradicional as fontes oficiais, produzidas no âmbito governamental, eram as mais consultadas, nas últimas décadas esse cenário tem sofrido modificações. Não são poucos os trabalhos de história política que tem diversificado as fontes utilizadas. Fontes cartoriais e eclesiásticas, periódicos e correspondência pessoal, entre outros tipos, tem sido cada vez mais utilizadas por historiadores. Veja, nesse sentido, somente nos atendo aos estudos produzidos no Rio Grande do Sul, os trabalhos de Luiz Alberto Grijó, Jonas Vargas, Tassiana Saccol, Paula Paz, Douglas Angeli, Rodrigo Dal Forno e Diego Devincenzi. Neles, fica evidente como o leque ampliado de fontes pode ser enriquecedor para uma análise da política.

Pesquisadora Carina Martiny
Pesquisadora Carina Martiny

Para a tese, assim como havia ocorrido no caso da dissertação, as fontes cartoriais do Arquivo Público foram fundamentais. Durante o mestrado a consulta aos inventários post-mortem foi essencial para traçar o perfil prosopográfico do grupo de indivíduos que formavam o que denominei de elite política local, pois forneciam uma série de informações importantes. Como se tratava de uma elite sobre a qual havia poucas informações e praticamente nenhum estudo genealógico, nos inventários era possível encontrar dados sobre as relações familiares dos indivíduos em análise, bem como dados sobre investimentos e bens que possuíam, a fim de caracterizá-los economicamente.

No doutorado, o primeiro documento que busquei junto ao APERS foi o inventário de Júlio de Castilhos. Em seguida, os inventários e testamentos de diversos familiares como dos seus pais, irmãos e tios. Foi a partir desses inventários e testamentos que pude não somente remontar a trama de relações familiares como também reconstruir o universo econômico da família. Sabe-se que muitos historiadores fazem uso deste tipo de documentação em larga escala para análises em série. Não foi o meu caso. Busquei os inventários da família interessada nas diversas informações contidas nessas fontes.

A análise intensiva essas fontes pode revelar informações variadas e importantes para a construção de nossa argumentação. Vou dar alguns exemplos. Foi em um inventário que descobri que Fidélis Nepomuceno de Carvalho Prates, tio de Júlio, era bacharel em Letras e em Ciências Físicas e Doutor em Medicina pela Faculdade de Paris e que Fidêncio, outro tio, era bacharel em medicina pela Faculdade de Paris. Essas informações, associadas a outras, foram base para que eu pudesse afirmar que a formação acadêmica de Júlio de Castilhos (bacharel em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, de São Paulo) não era um evento isolado, mas fazia parte de uma estratégia familiar que, já em uma geração anterior, buscava a formação superior de alguns de seus membros. Um outro exemplo: nas declarações finais da avaliação dos bens no inventário do pai de Júlio, Francisco Ferreira de Castilhos, datado de 1871, a inventariante e esposa do falecido, Carolina Prates, declarava que havia recebido de Antônio Gomes Pinheiro Machado uma quantia em dinheiro. Antônio era pai de José Gomes Pinheiro Machado, que anos depois se tornaria senador na República, liderança muito próxima a Júlio e seu compadre. Essa informação foi importante para argumentar que a relação dos Castilhos com os Pinheiro Machado vinha de longa data, não tendo ocorrido apenas no âmbito da política. Na realidade, neste caso, as relações pessoais se estenderam para o campo da política. O que quero demarcar com esses dois exemplos é que o interesse do historiador que trabalha com história política quando olha para fontes cartoriais vai muito além de reconstruir o perfil da riqueza através da avaliação dos bens constantes nesse documento. Pequenas informações são preciosas.

Assim, posso afirmar que a investigação em fontes cartoriais nos dá acesso a diversas informações que nos permitem dar um tratamento holístico ao nosso objeto. Informações de cunho econômico, sobre relações pessoais e espaços sociais ocupados perpassam as páginas desse tipo de documentação e muito nos interessam para compreender as ações de indivíduos no âmbito da política.

Você acredita que a análise de documentos como inventários e testamentos tem potencial para inovação no campo da história política?

Como já apontei anteriormente, esse tipo de fonte é riquíssima em informações e já tem sido muito utilizada por historiadores que tratam da política por um viés social. O campo da história política tem apresentado muitas inovações nas últimas décadas, tanto em relação a fontes quanto de referenciais teórico-metodológicos. A aproximação com outras disciplinas como sociologia e antropologia, por exemplo, também caracteriza muitos dos trabalhos de história política. Especificamente em relação às fontes, a incorporação de uma variedade de documentos é expressiva. Quando se pensa em história política os documentos oficiais, produzidos pelo Estado, aparecem tradicionalmente como fontes em potencial. Obviamente, tais fontes são riquíssimas, sobretudo quando submetidas a um trabalho atento de crítica. Entretanto, há uma série de outras fontes que se revelam riquíssimas para análises de viés político. O uso de correspondência pessoal – como foi o caso em minha tese – pode revelar práticas políticas que não seriam perceptíveis ao analisar apenas documentação oficial. O mesmo ocorre em relação a documentos como inventários e testamentos. Entender política passa por vias que vão além das decisões governamentais. Compreender política passa também por compreender quem são aqueles que se ocupam dos cargos governamentais e, para isso, é preciso ir para além da esfera estritamente política. É compreendê-los inseridos em um universo mais amplo e interdependente. Conhecer seu universo familiar, seu campo de atuação econômica – e também de sua família –, suas relações sociais e tudo o que é possível desvendar.

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