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Entrevista com Caroline von Mühlen - Parte I

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APERS Entrevista
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Caroline von Mühlen é licenciada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2007) e mestre em História pela mesma instituição (2010). É doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2017). Sua tese pode ser acessada aqui. É autora de “Degredados e Imigrantes: trajetórias de ex-prisioneiros de Mecklenburg-Schwerin no Brasil Meridional (século XIX)”, publicado pela UFSM em 2013. Atualmente, é professora de História no Colégio Sinodal de Portão.

Caroline, você poderia nos contar sobre a temática de sua dissertação e de sua tese de doutorado?

A vontade de descortinar a história da imigração alemã no Rio Grande do Sul surgiu ao longo da graduação em História, especialmente, durante os anos que atuei como bolsista de iniciação científica no projeto “A religião de Jacobina” – assunto também negligenciado pela historiografia – coordenado pelo Prof. Martin Dreher. Ao final da graduação tive acesso a um conjunto documental inédito que posteriormente faria parte de um projeto mais amplo desenvolvido pelo Prof. Dreher. Dessa forma, meu trabalho de mestrado partiu deste conjunto documental do Arquivo Secreto de Mecklenburg-Schwerin. Tratava-se de documentos oficiais acerca das negociações entre Georg von Schaeffer, representante do Império do Brasil e o Grão-Duque Friedrich Franz, de Mecklenburg-Schwerin sobre a deportação de prisioneiros das casas de correção para o Brasil. 

Caroline von Mühlen
Caroline von Mühlen

Além das correspondências oficiais, cartas, relatórios, um diário de bordo, interrogatórios e listas nominativas dos emigrantes foram utilizados para desenvolver a pesquisa que tinha como objetivo dar voz aos marginalizados e transformar os estigmas em dignidade. Esse material definiu o eixo central da minha pesquisa e, posteriormente, a escrita da mesma. 

Com o intuito de analisar algumas trajetórias de ex-prisioneiros de Mecklenburg-Schwerin no Brasil, inclui na minha pesquisa documentos variados do Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERS), Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo (MHVSL). Através do cruzamento de fontes e do método nominativo foi possível evidenciar que essas pessoas não somente formaram o lastro dos primórdios da imigração alemã para o Brasil, mas, sobretudo, constituíram-se num grupo ativo a indispensável para a formação e desenvolvimento das Colônias Alemãs de São Leopoldo e do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, contrariando a tese de isolamento e do desaparecimento apontadas pela historiografia clássica. 

Meu trabalho de doutorado é resultado do contato que tive com processos criminais durante o mestrado. Na época usei alguns processos criminais para acompanhar a trajetória de alguns ex-prisioneiros, no entanto o interesse por este tipo de fonte me levou a desenvolver um projeto de pesquisa que resultou na tese de doutorado, defendida em 2013. A intenção não era estudar, exclusivamente, os alemães e seus descendentes, mas investigar todos os processos localizados no APERS para a Colônia Alemã de São Leopoldo, entre 1846 a 1871. Para a minha surpresa, eles apareceram com freqüência na condição de réus e vítimas. Influenciada pela historiografia mais recente sobre a imigração alemã, a criminalidade e as práticas de justiça – cito, especialmente, Marcos Justo Tramontini, Deivy Carneiro e Maira Inês Vendrame – o eixo central da tese foi ganhando forma, cujo objetivo era demonstrar que a “organização social” dos alemães, descendentes e nacionais, na Vila e Cidade de São Leopoldo, foi marcada por inúmeras tensões, reivindicações, desentendimentos e conflitos intra e extra grupo. Tanto a dissertação, quanto a tese surgiram da necessidade de revisitar temas esquecidos ou silenciados pela historiografia até então.

Como foi a experiência de trabalhar com fontes primárias do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul?

Analisar fontes primárias é uma tarefa árdua, porém compensadora. As informações contidas nos documentos, aliadas ao cruzamento com outras fontes, enriqueceram muito a minha pesquisa de mestrado e doutorado. Os processos criminais, por exemplo, foram indispensáveis para entender as relações sociais estabelecidas pelos sujeitos investigados, uma vez que não deixaram registros a respeito da sua vida. Por se tratar de um corpus documental manuscrito e do século XIX, a leitura exigiu muitas horas para compreensão da letra do escrivão, paciência e, principalmente, atenção. Contudo, à medida que a leitura avançava e histórias eram contadas, recontadas e até modificadas, percebi a oportunidade de acessar, através das queixas e dos depoimentos, aspectos do cotidiano de homens e mulheres, de distintos status, nacionalidades, idades e religiosidades.

Pesquisar grupos subalternos ou silenciados torna a pesquisa empírica mais difícil, porém a fonte primária só tem validade quando o pesquisador faz perguntas e estabelece hipóteses acerca do objeto que pretende pesquisar. Para a produção do conhecimento histórico e evitar a mera reprodução das informações, alguns cuidados devem ser tomados pelo pesquisador ao analisar a fonte, além de definir a metodologia que norteará a sua pesquisa. Por fim, o trabalho com fontes primárias permite ao historiador revistar temáticas e ampliar o conhecimento sobre o passado.

Quais estigmas estiveram associados aos imigrantes mecklenburgueses?

Durante muito tempo esses emigrantes foram silenciados, marginalizados e estigmatizados pela historiografia. A este grupo foram atribuídos estigmas como “maus imigrantes”, “prisioneiros”, “ex-prisioneiros”, “ladrões de cavalo”, “indesejáveis”, além de perpetuar na historiografia a tese de isolamento e desaparecimento dos mesmos da história da imigração alemã de São Leopoldo. Enquanto que alguns grupos foram qualificados como “bons imigrantes”, “honrados”, “trabalhadores” e responsáveis pelo progresso do Rio Grande do Sul, outros foram afastados da Colônia Alemã de São Leopoldo e encaminhados para a distante Colônia Alemã de São João das Missões, por causa de sua origem e estigma. Theodor Amstad S. J. e Arno Philip, em Cem anos de germanidade no Rio Grande do Sul, 1824-1924, por exemplo, cita a “lenda dos mecklenburgueses”, noticiando que os apenados chegaram antes de 1824 e parte deles formaram um bando de ladrões que pilhavam igrejas e residências de fazendeiros. Aurélio Porto qualifica-os como “imorais” e justifica o insucesso da nova colônia no oeste do Rio Grande do Sul em decorrência da embriaguez e ociosidade dos mecklenburgueses. Hunsche, nesse mesmo sentido, identifica os apenados como a “leva condenada” e que desapareceram sem deixar vestígios. Citei aqui alguns autores que escreveram sobre os mecklenburgueses e utilizei na dissertação. É importante ressaltar que esses autores tiveram um papel importante na construção de uma narrativa apologética sobre a imigração, enaltecendo alguns e excluindo outros. Além de perpetuar o mito do “bom” e do “mau” imigrante, moldaram o senso comum dos descendentes desses grupos. Ao buscar fontes variadas e cruzá-las com o conjunto documental sobre os ex-prisioneiros, foi possível acompanhar a trajetória de algumas famílias. Constatou-se que nem todos os mecklenburgues que chegaram em 1824 foram enviados para a Colônia de São João das Missões. Várias famílias ficam em São Leopoldo e outras conseguiram retornar da distante colônia. Em São Leopoldo desenvolveram estratégias para conseguir se inserir na lógica da comunidade local e, sobretudo, ocultar o estigma de origem.

Confira na próxima semana a continuidade da entrevista com Caroline von Mühlen!

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