Entrevista com Cláudia Mauch - Parte I
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Cláudia Mauch é professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição onde defendeu seu mestrado (1992) e seu doutorado (2011). É autora de “Ordem Pública e Moralidade: Imprensa e Policialmento Urbano em Porto Alegre na década de 1890” (EDUNISC, ANPUH-RS, 2004) e de “Dizendo-se autoridade: Polícia e Policiais em Porto Alegre, 1896-1929” (Óikos, Editora Unisinos, 2017). É especialista em história do crime e da justiça criminal, e, em particular, na história da polícia.
1) Cláudia, gostaria de pedir um breve apanhado de sua trajetória, entre o mestrado e o doutorado. Em sua opinião, quais são as continuidades e rupturas entre ambos os trabalhos?
Existe uma continuidade evidente no meu interesse por estudar o tema da história da polícia urbana e dos policiais. No mestrado, que iniciei em 1988, a dificuldade que tive em encontrar fontes sobre as polícias atuantes em Porto Alegre acabou me levando para a imprensa. Explicando melhor: meu interesse por estudar a polícia em Porto Alegre começou quando, procurando fontes sobre a Colônia Africana no Arquivo Moysés Vellinho, achei o regulamento da Polícia Administrativa e procurei me aprofundar para entender as disparidades entre um regulamento de uma instituição disciplinar e disciplinadora e o que eu já conhecia sobre delitos e desordens na cidade na mesma época a partir de pesquisas em jornais. Então a pesquisa em jornais do final do século XIX foi anterior, dentro dos projetos da Sandra Pesavento. Mas desde o princípio, embora não conhecesse praticamente nada sobre historiografia da polícia, meu interesse era fugir de uma história institucional e entender quem eram os policiais, como atuavam, como eram treinados. E foram essas fontes que me faltaram no mestrado. Só as encontrei pouco mais de um mês antes de defender. Para o doutorado, conhecendo mais fontes internas da polícia e principalmente os registros de pessoal, pude ampliar o período de análise e os problemas de pesquisa. Também entre o mestrado e o doutorado pude ter acesso a bibliografia específica sobre história da polícia, o que foi fundamental. A ruptura, então, se refere a um conhecimento muito mais aprofundado da historiografia sobre polícia e do campo do crime em geral, bem como do fato de a pesquisa ter um caráter mais de história social, enquanto no mestrado minhas referências principais estavam no campo da então chamada “nova história cultural”.
2) Como você encara o desenvolvimento da história do crime e da criminalidade entre o fim dos anos 80, quando você iniciou sua pesquisa de mestrado, e hoje?
Houve um grande desenvolvimento do campo da história do crime e da justiça criminal no Brasil e América Latina desde fins dos anos 1990. Até esse período tínhamos poucos trabalhos no Brasil, mas pode-se dizer que ao longo dos anos 1980 foram publicados trabalhos muito importantes e pioneiros que tiveram enorme influência na minha geração. Crime e cotidiano de Bóris Fausto é de 1984; Crime e escravidão de Maria Helena P. T. Machado é de 1987; a dissertação de mestrado de Marcos Bretas – A guerra das ruas – é de 1988. Vários trabalhos não especificamente sobre crime, justiça ou polícia começaram a se utilizar das fontes produzidas pelo sistema de justiça criminal – polícia, judiciário criminal, prisões – para investigar o cotidiano e a cultura das classes populares e escravizados, promovendo um interesse muito grande sobre esses documentos, o que mais tarde, já nos anos 2000, levou a um aprofundamento da reflexão sobre as instituições que os produziram. Dessa leva destaco Trabalho, lar e botequim de Sidney Chalhoub, de 1986, e Meninas perdidas, de Martha Abreu, de 1989, que pessoalmente foram os que me influenciaram a pesquisar documentação criminal.
Hoje temos um campo em pleno florescimento, com muitas pesquisas sobre várias regiões do país, simpósios e uma rede de investigadores no Brasil e América Latina tratando de temas variados a partir de diferentes perspectivas teórico-metodológicas.
3) Poderíamos dizer que há um deslocamento da virada do século XIX para o XX para períodos mais recentes nos trabalhos do campo?
Sim, embora ainda hoje esse período seja muito pesquisado (ainda há muito pra fazer!). Mas o deslocamento não foi só para períodos mais recentes, uma vez que muitos trabalhos tem se ocupado de períodos mais recuados do século XIX e XVIII também.
4) Quais eram as principais discussões teóricas naquele momento, e o que mudou desde então?
No final dos anos 1980 quando iniciei o mestrado as principais discussões se davam em torno das críticas às chamadas grandes narrativas a partir dos pós-estruturalistas. Isso representava uma ruptura com as orientações marxistas preponderantes na graduação, e gerava muita incerteza, pois no meu caso tomei conhecimento do pós-estruturalismo de Foucault ao mesmo tempo que dos marxistas ingleses. Naquele contexto, foram os debates da “nova história cultural”, que traziam também a influência da antropologia, que abriram possibilidades de tentar ultrapassar os impasses gerados pelas incompatibilidades entre ambas correntes teóricas. Muita coisa mudou e hoje temos acesso facilitado a discussões teóricas e historiográficas que antes da era da internet levavam anos para chegar a alunos/as de pós-graduação no Brasil. No meu mestrado, por exemplo, tive enorme dificuldade em ter acesso a trabalhos estrangeiros clássicos sobre história da polícia, alguns dos quais foram traduzidos posteriormente. Felizmente o professor Marcos Bretas, da UFRJ, me enviou por correio alguns textos de historiadores ingleses em xerox. Na área do crime e justiça criminal a obra de Norbert Elias teve bastante impacto a partir dos anos 1990, assim como os estudos de gênero e a micro-história. E como desde o final dos anos 1990 a historiografia do crime, polícia e instituições punitivas vem se avolumando na América Latina, já temos um corpo bastante significativo de produções que discutem diversos temas e concepções teóricas.
Confira na próxima semana a continuação da entrevista com Cláudia Mauch!