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Entrevista com Cláudia Mauch - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS
Na semana anterior, Cláudia Mauch nos falou sobre suas pesquisas de mestrado e doutorado, e também teceu considerações a respeito da história do crime e da criminalidade. Confira, a seguir, a continuidade da entrevista!

5) Michel Foucault e Edward Palmer Thompson são autores fundamentais para pensarmos a história do crime, da criminalidade, da polícia. É possível lidar com referenciais heterogêneos? Como fazer isso?

É interessante pensar que essa questão era feita no fim dos anos 1980 e atormentou todo meu mestrado, e continua sendo feita hoje. E ainda hoje não tenho uma resposta. Usar Thompson e Foucault no “marco teórico” foi um cliché da minha geração, eu inclusive.
Hoje penso que se deva separar o tipo de influência de cada autor. Foucault foi e é referência fundamental para o campo do crime e justiça criminal porque a partir de Vigiar e punir (de 1975) e nos estudos posteriores chamou atenção para a complexidade das tecnologias de poder e controle na modernidade, para o fato das práticas penais ultrapassarem o campo da lei e do Estado, entre outras questões, o que permitiu que a historiografia conseguisse superar visões reducionistas sobre o controle social. Quanto a Thompson, sua influência, que também é enorme, diz respeito em primeiro lugar ao entendimento da lei como espaço de luta (em Senhores e caçadores, também de 1975); em segundo lugar trata-se de uma influência mais difusa a partir das suas concepções e formas de análise das relações sociais e da cultura, do papel ativo dos sujeitos na história. O problema se daria a partir do momento em que o historiador deseje usar os métodos propostos por Foucault, que são incompatíveis com o marxismo de Thompson e como ele pensa a agência dos sujeitos. Fora isso, e entendendo que as teorias são ferramentas que nos ajudam a levantar perguntas e não camisas de força, considero ser possível uma história social e cultural inspirada em Thompson utilizar e debater o alcance e as limitações das contribuições de Foucault para o entendimento da constituição das instituições e práticas de vigilância e punição na modernidade.

6) Como foi a mudança de ênfase dos corpos documentais de suas pesquisas da imprensa para as fontes policiais propriamente ditas?

No mestrado eu já havia utilizado fontes policiais, mas no doutorado ampliei o leque, abrangendo diferentes tipos de fontes produzidas pelas polícias, desde os inquéritos (relatórios) da polícia judiciária, registros de ocorrências, até documentação de pessoal e inquéritos administrativos movidos contra policiais da Polícia Administrativa (infelizmente não encontrei o mesmo tipo de fontes para a judiciária). Fontes diferentes exigem metodologias diferentes. No mestrado fiz um esforço para me apropriar de instrumentos de análise que dessem conta dos textos de jornal de finais do século XIX e de como tratavam os homens e mulheres que entendiam representar o perigo, o atraso, a vadiagem, o crime, bem como os próprios policiais e as funções da polícia. No doutorado minha maior dificuldade foi com o tratamento quantitativo das informações dos registros de pessoal. Tratava-se de aprender não só a montar banco de dados como também como interpretar as informações que extraía dele. Assim, acabei me voltando para uma bibliografia de história social e para leituras de micro-história. O trabalho também foi facilitado pelo contato com obras de outros/as historiadores/as que haviam feito pesquisas com dados de policiais e algumas interrogações semelhantes, como André Rosemberg e Haia Shpayer-Makov. As fontes policiais são muito ricas em informações sobre os alvos da atenção policial, mas é preciso paciência e atenção para encontrar nelas os próprios policiais.

Retrato claudia
Historiadora Cláudia Mauch

7) Em sua tese de doutorado você pesquisou alguns processos judiciais do Arquivo Público. Em que eles contribuíram para seu argumento? Como foi cruzá-los com a documentação da Polícia Administrativa?

A bem da verdade usei pontualmente poucos processos do APERS no doutorado, que me foram indicados por colegas. Como meu interesse era o trabalho policial, considerei suficiente trabalhar com os inquéritos produzidos por delegados da polícia judiciária (que na época eram chamados de “relatórios”). Tais inquéritos eram enviados ao judiciário criminal e, se fosse confirmado crime, era aberto processo e o mesmo inquérito passava a fazer parte do processo. Assim trabalhei com muitos inquéritos do acervo do Arquivo Histórico do RS, os quais, junto com outros documentos como autos de averiguações e registros de ocorrências, me ajudaram a entender como as polícias administrativa e judiciária agiam, quais eram os locais e pessoas que recebiam atenção policial, como se dava a repressão dos delitos, quais delitos eram mais propensos a serem investigados etc. Além disso, por suas próprias características, os inquéritos trazem uma série de informações caras à história social e cultural semelhantes às dos processos. A diferença principal é que o inquérito é elaborado pelo delegado e não admite o contraditório.

8) A consulta a fontes criminais não necessariamente envolve um interesse direto pela história do crime e da criminalidade (por exemplo, enfocando a história dita de baixo). No entanto, o crime está presente, o tempo todo, nas narrativas oportunizadas por esse tipo de documentação. Como você vê essa questão?

Essa é uma questão importante. Toda análise de fontes precisa entender como e porquê, com qual finalidade, por quem foi produzida. Um registro de ocorrência, inquérito ou processo criminal só existe porque alguém (que pode ser um agente do Estado, como o policial) interpretou algum evento como crime, ou uma pessoa como delinquente, e colocou em marcha procedimentos burocráticos que visam puní-lo de algum modo. E tais procedimentos geraram consequências para a vida dos acusados. A riqueza desses registros para temas de história social, cultural, econômica, de gênero e assim por diante está relacionada às características próprias das lógicas policiais e do judiciário criminal tal como foram se constituindo na modernidade: a polícia tem a ambição de conhecer o (suposto) delinquente e suas (supostas) motivações em todos os seus aspectos. Por isso registra todos os dados que pode obter e recolhe depoimentos, desenvolve teorias sobre o comportamento criminoso e procura aplicá-las a indivíduos e eventos singulares. Assim, mesmo que o pesquisador não esteja interessado no crime, precisa entender que todos os dados presentes nos documentos servem a objetivos do sistema de justiça criminal. Os depoimentos transcritos nos autos foram recolhidos em situações muito específicas, onde as pessoas estão colocadas diante de policiais ou de juízes, promotores e advogados, via de regra numa disparidade de poder enorme. Então as reflexões sobre o caráter das fontes policiais e judiciárias precisa estar presente mesmo em trabalhos não diretamente interessados no crime.

9) Em 2013 você participou da 11a Mostra de Pesquisa do Arquivo Público, contribuindo com um importante texto sobre a pesquisa em fontes criminais (que inclusive contribuiu bastante para a elaboração de nosso Guia Prático de Pesquisa em Fontes Judiciais). Como você encara o espaço da Mostra como ambiente de troca entre pesquisadoras e pesquisadores?

Considero a Mostra um espaço muito importante para a historiografia no RS, e fiquei muito honrada em participar naquele momento. Ela tem ao longo dos anos permitido que pesquisadores divulguem e debatam suas pesquisas e tem contribuído para reafirmar o APERS não somente como arquivo mas como centro de pesquisas.

10) Sua orientadora de mestrado foi uma das historiadoras de maior destaque do Rio Grande do Sul. Em seu entendimento, qual é o legado de Sandra Jatahy Pesavento?

Sandra Pesavento deixou um legado enorme em suas obras e nos pesquisadores que ajudou a formar, dentre os quais me incluo. Aprendi a fazer pesquisa com ela, e sem essa experiência de ter participado como auxiliar de pesquisa dos seus projetos no final dos anos 1980 até meados dos 1990 eu certamente não teria feito o mestrado e tudo o que se seguiu. Ela era brilhante e inquieta, sempre atrás de coisas novas. Volta e meia me pego pensando o que ela estaria fazendo hoje, quem estaria lendo, quais seriam seus projetos. É muito bom ver que estudantes de graduação em história hoje estão lendo suas obras e a usando como referência, o que tem sido facilitado pela excelente iniciativa de colocar seu acervo digitalizado à disposição do público.

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