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Entrevista com Marcelo Moura Mello - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana anterior, o antropólogo Marcelo Moura Mello nos relatou um pouco sobre sua trajetória de pesquisa e o papel do Arquivo Público dela. Vamos acompanhar a continuidade da entrevista!

2022 07 13 Marcelo Mello
Marcelo Mello

3) Você pesquisou em arquivos históricos em diferentes países. Entretanto, essa não é a prática profissional mais usual entre antropólogos. Você pode nos relatar sobre essas experiências?
As pesquisas em outros países decorreram dos meus interesses na Guiana, um país que, infelizmente, ainda é pouco estudado, inclusive no Brasil (não se deixe de mencionar, entretanto, a obra de Emília Viotti da Costa, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue). Tais pesquisas se tornaram possíveis porque me vinculei a um projeto financiado pelo European Research Council, sediado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenado por Cristiana Bastos. Fiz incursões em arquivos em Londres, em Lisboa, em Funchal e em Georgetown. Recolhi material interessante sobre a reconfiguração de hierarquias raciais e laborais na então colônia da Guiana Britânica, no período da pós-emancipação.
No Reino Unido, as condições de pesquisa são, em geral, excelentes, em especial em Kew e na British Library. Há um acervo precioso do Colonial Office disponível para consulta e a Grã-Bretanha, me parece, leva cada vez mais a sério questões relativas ao imperialismo, ao colonialismo e à escravização. Um desafio permanente no Reino Unido (e na Guiana) tem a ver, é claro, com a língua. Não se trata apenas de domínio da língua inglesa, mas do desafio de se familiarizar com outra linguagem, com as categorias coloniais. Não deixa de ser uma experiência com a alteridade.
Portugal tem também excelentes instituições e a produção da história tem se diversificado, também pelo fluxo migratório recente e pela internacionalização da academia portuguesa. Há certa nostalgia imperial no ar, os símbolos das conquistas passadas abundam e a presença de portugueses pelo mundo é valorada. Em paralelo, há muito trabalho crítico sendo feito. Certamente, há muitas pessoas mais experimentadas do que eu para tratar dos arquivos portugueses.
Na Guiana, o cenário é outro. O país era uma colônia britânica até 1966. Muitos documentos foram perdidos, incinerados ou corroídos por insetos. A estrutura do arquivo – o Walter Rodney Archives, em homenagem ao brilhante historiador guianense, assassinado pelo regime ditatorial do país em 1980 – melhorou significativamente nos últimos anos. Entretanto, a maior parte dos acervos sequer é catalogada. Em mais de uma ocasião, as funcionárias dos arquivos traziam caixas com os documentos e pediam que lhes reportasse qual o seu conteúdo... 

4) Lembro-me do dia em que você encontrou a medição judicial de Cambará, que apontava a localização de quilombolas. Eu me encontrava na sala de pesquisa do Arquivo Público, pesquisando, e você me chamou para ver, visivelmente tocado. Creio que esse tipo de reação emocional, familiar para muitos historiadores, contradiz (ou relativiza) uma dicotomia que frequentemente se faz, de que documentos escritos seriam “mortos”, “frios”, “impessoais” em contraponto ao trabalho de campo “vivo”, “quente”, “pessoal”. Você concorda?
Absolutamente. E agradeço a você por lembrar dessa cena. De fato, foi um dos momentos mais felizes e reconfortantes da minha vida profissional e pessoal. Esse documento foi importante porque embasou ainda mais a reivindicação territorial de Cambará. Quando localizei esse documento volumoso, comecei a seguir os rastros, as trilhas e as pistas de pessoas que eu conhecia por meio de narrativas orais. Lá estavam os(as) “antigos”(as)! O campo ecoava no arquivo. E abriam-se novos caminhos para se seguir as histórias da comunidade. Eu não chegaria a esse documento não fosse por Seu Orcindo, Seu Jorge, Seu Geraldo, Dona Maria, Dona Isaura e outras tantas pessoas de Cambará. Cada pesquisa tem suas especificidades, mas no que me diz respeito, o arquivo já era cheio de vida. E se tornou ainda mais. Não me parece à toa, aliás, que tantos antropólogos(as) se empenhem em se debruçar sobre os “papéis” produzidos pelos seus pares no passado. Preciso pensar mais a respeito, mas parece haver certa propensão intimista, entre antropólogos(as), nas relações estabelecidas com arquivos.

5) Quais são as contribuições possíveis das fontes arquivísticas às etnografias? Por que alguns antropólogos as evitam?
Olívia Cunha demonstra muito bem como a relação de antropólogos com arquivos é contemporânea a diversos processos de institucionalização da disciplina, nos quais certas modalidades de pesquisa ganharam centralidade, em detrimento de outras. As razões para tal evitação devem ser buscadas aí. A filiação teórica – algo levado muito a sério por diversas pessoas – também pode prevenir a pesquisa em arquivos. Seja como for, há um número significativo de pessoas com formação em antropologia realizando pesquisas em arquivos diversos, sob ângulos variados, com grupos e populações distintos, em arquivos de missionários, comunitários, em acervos de pesquisadores, de organismos estatais etc. Como Olívia sugere em seu artigo “Tempo imperfeito”, trabalhar com as fontes permite variadas experiências metodológicas. Pesquisar fontes escritas é se deparar com múltiplas temporalidades, cadeias de eventos, ações contraditórias. São registros, condensados, da complexidade da vida social. Os paralelos com a etnografia me parecem evidentes.

Na próxima semana, vamos acompanhar a terceira e última parte da entrevista com Marcelo Mello!

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