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Entrevista com Wagner de Azevedo Pedroso - Parte 1

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Wagner de Azevedo Pedroso graduou-se em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos no ano de 2005. Em 2013, concluiu seu mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é docente do ensino fundamental no município de Montenegro. É autor do livro “Nazário e um plano de rebelião escrava na Aldeia dos Anjos – os brancos eram uns pelos outros, por isso os negros também deviam fazer o mesmo” (Porto Alegre, Editora Coragem, 2020).

1) Wagner, você poderia nos falar um pouco sobre em que consiste sua dissertação de mestrado?

De forma geral procurei na dissertação compreender a tentativa de insurreição de escravizados, ocorrida no ano de 1863, na Freguesia da Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos (atualmente correspondente ao território do município de Gravataí e arredores). Pois sempre tive muita curiosidade em saber como aqueles escravizados conseguiram organizar um plano insurrecional contra seus senhores e envolver grande parte dos cativos da localidade, mas logo de cara percebi que era necessário compreender melhor a estrutura escravista na qual eles viviam, para, aí sim, entender as estratégias dos insurgentes de 1863. Essa perspectiva de análise se baseou, em grande medida, na percepção apresentada por Eugene Genovese, de que não é possível analisar senhores e escravizados em separado, pois eles estão constantemente interagindo naquela sociedade. Pensando a partir deste ponto de vista, a dissertação acabou se constituindo em uma análise entre a micro e a macroestrutura da sociedade da Aldeia dos Anjos, na qual usei como fio condutor a tentativa insurrecional de 1863, na qual as questões estruturais da Aldeia dos Anjos acabaram ganhando maior destaque. Na primeira parte da dissertação, apresentei e analisei um extenso levantamento demográfico e econômico da região, entre 1841 e 1870, principalmente que ajudaram a compreender a estrutura dos “plantéis de escravizados” da localidade, permitindo compreender de forma mais ampla a macroestrutura daquele período. Um ponto chave que “veio à tona” e foi bastante abordado, foram as alterações que se processavam na época do plano insurrecional naquela localidade – principalmente as relacionadas ao fim do tráfico negreiro (1850). Na segunda parte do trabalho, reconstruí fragmentos das redes de relações sociais e familiares dos senhores dos escravizados envolvidos no plano insurrecional e como estes se inseriam na estrutura econômica da Aldeia dos Anjos. Já na última parte da dissertação, analisei as relações sociais e familiares dos escravizados levando em consideração o contexto no qual eles viviam e as possibilidades de ação dessas pessoas dentro do sistema escravista da localidade naquele momento.

Wagner de Azevedo Pedroso  foto 1
Historiador Wagner de Azevedo Pedroso
2) Qual foi a importância das fontes custodiadas no Arquivo Público para seu trabalho?

Para todos nós que amamos pesquisar em arquivos, primeiramente é importante dizer que temos o privilégio de ter acesso às fontes custodiadas no APERS. Sempre falo que a sala de pesquisa do arquivo traz aquela sensação de sermos detetives que estão constantemente encontrando novas pistas para reforçar ou derrubar suas ideias iniciais, ou mesmo levando-nos a novas possibilidades de análise ou caminhos a serem tomados na pesquisa. No meu caso, os documentos do APERS – como processos-crime, inventários post-mortem, testamentos e cartas de alforrias – foram fundamentais para a estruturação da minha pesquisa. Os dados coletados dessas fontes, principalmente os levantamentos realizados nos inventários post-mortem e testamentos, permitiram construir uma visão mais completa e complexa da estrutura social e econômica da Aldeia dos Anjos, trazendo as nuances daquela localidade, que não se enquadra dentro da estrutura dos principais centros do Império Brasileiro, ou mesmo da própria Província de São Pedro, principalmente, no quesito da constituição do sistema escravista da Aldeia dos Anjos. Esse contexto que se descortinou com a pesquisa dos documentos presentes no APERS possibilitou apresentar uma análise mais consistente da tentativa de insurreição dos escravizados no ano de 1863, principalmente na articulação entre estes diversos documentos. Sempre é bom reforçar a importância dessas instituições para a construção do conhecimento científico que tanto necessitamos para a compreensão de nossa sociedade, principalmente após nos depararmos com diversos casos de descaso governamental com essas instituições, como o caso do incêndio na “cinemateca” agora em julho, ou mesmo o do Museu Nacional em 2018.

3) Um dos maiores desafios epistemológicos da História consiste na articulação entre atuação subjetiva e determinações estruturais. Como você colocou esses dois aspectos em diálogo?

Sim, este é um dos maiores desafios da História, e foi justamente a parte que mais me desafiou na estruturação da dissertação, principalmente porque era o objetivo inicial do trabalho fazer essa articulação, mas é preciso dizer que pensei, ingenuamente, que encontraria todos os dados estruturais da Aldeia dos Anjos já levantados, organizados e analisados, para somente realizar as análises referentes às atuações subjetivas dos escravizados. Infelizmente essa não foi a realidade encontrada, ao começar a leitura da bibliografia sobre a Aldeia dos Anjos e a pesquisar as documentações da localidade, deparei-me com um quadro em branco no qual não havia dados estruturados sobre este período, sendo assim, passei a dedicar grande parte da pesquisa ao levantamento, organização e análise de dados demográficos e econômicos da Aldeia dos Anjos, que eram, e foram, fundamentais para a realização da análise do plano insurrecional. Este levantamento acabou reduzindo consideravelmente o tempo para a articulação entre “determinações estruturais e atuação subjetiva”. Apesar desse contratempo me detive na construção de uma boa base de dados macroestruturais da economia e demografia local, que possibilitaram a melhor articulação com a reconstrução dos fragmentos das estruturas familiares e sociais de senhores e escravizados (envolvidos na tentativa insurrecional) e, principalmente, os relatos presentes no processo-crime da tentativa insurrecional. Apresentando de forma mais ampla a reconstrução econômica e demográfica, principalmente das relacionadas às estruturas dos "plantéis de escravizados”, foi possível visualizar melhor as dinâmicas gerais da localidade, a partir dessa visualização mais ampla, passei, através da reconstrução dos fragmentos de redes familiares e sociais, a perceber quais posições os senhores dos insurgentes ocupavam dentro desta estrutura da Aldeia dos Anjos. No caso dos senhores, ao perceber que estes e seus familiares compunham parte da elite local, percebi a necessidade de mudar a perspectiva de análise inicial - quando acreditava se tratarem de pequenos proprietários locais, questão que só foi possível ao analisar os casos desses senhores de forma individual, através da articulação entre “registros eclesiásticos (batismo, matrimônio e óbito)”, “inventários post-mortem” e “testamentos”. Compreendendo a posição social que esses senhores ocupavam naquela sociedade, passei a analisar os relatos dos escravizados, presentes no processo-crime, com outros olhos. Comecei a perceber e entender, no meio de suas histórias, como e por que escravizados se movimentavam por determinado lugar e falavam com determinadas pessoas, ou seja, passei a compreender o seu dia a dia na Aldeia dos Anjos – claro que esse entendimento só foi possível após a visualização de um quadro melhor desenhado desta localidade. Mas os relatos foram o grande destaque para a articulação de todos os dados, pois permitiram apresentar a versão dos escravizados, assim como a população livre entendia o que era permitido, ou mesmo comum, nas ações desses escravizados em seu cotidiano. Acredito que as percepções da população (livre ou escravizada) que aparecem em relatos dos processos-crime, neste caso o da insurreição, é o que nos permite compreender os limites das ações dos cativos dentro de determinado sistema escravista. Apesar de compreender que as perspectivas de análise (micro e macro) permitam que percebamos as nuances das ações de cada indivíduo, ainda tenho para mim que, além da pesquisa e do cruzamento das fontes, é necessário uma certa “empatia” ou, talvez, “sensibilidade” do pesquisador com relação à história e contexto de vida do agente histórico que está vivendo aquele momento, para desta forma conseguir analisar as ações subjetivas dos agentes históricos, no meu caso, ao estudar a tentativa insurrecional, foi buscar essas ações subjetivas nas possibilidades de decisões que cada escravizado, principalmente os insurgentes, poderiam tomar conforme o seu contexto de vida na Aldeia dos Anjos.

Na próxima semana, leremos a continuação da entrevista com Wagner Pedroso! Não perca!

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