Achados do Arquivo: O caso da professora contra o "prefeito"
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A desigualdade de gênero nos anos de 1920 no Rio Grande do Sul era muito evidente: seja nas possibilidades de trabalho, no tratamento diferente da lei ou nos casos de violência física, sexual e psicológica. E quando essas disparidades eram somadas a uma diferença de classe social? Trataremos disso através de uma denúncia de 1923 em Nova Bréscia, 5° distrito de Encantado na época.
Carlos de Oliveira Paes, o réu deste processo, era um homem casado, idade não especificada e sub-intendente municipal. Esse cargo significava, na prática, que ele era a primeira autoridade do distrito, como se fosse o “prefeito” de Nova Bréscia. Já a vítima era Maria Emília Moraes, menor de 16 anos, criada por sua mãe viúva e de uma vida “simples, pobre, mas honesta”. O acusado frequentava cotidianamente a casa dessas duas mulheres e, “usando de sua posição como autoridade administrativa”, ganhara confiança de Maria da Silva, mãe da lastimada.
Assim, o sub-intendente conseguiu a permissão da viúva para Emília assumir um emprego como professora municipal, cujo cargo ele havia arranjado. Contudo, para desempenhar tal posição, a autora do processo precisou mudar-se da casa de sua genitora, o que significava estar “livre de qualquer olhar” e da proteção de Maria da Silva. Com esse cenário, Carlos começa um “cerco de seduções, procurando enganá-la com promessas falsas [...] e assíduas alterações de apaixonado impulso”. Mesmo com tantas tentativas, Maria Emília não cede às vontades do réu.
Segundo a autora do caso, Carlos Paes não conseguindo pelos “meios suasórios saciar seus obcecantes desejos de libidinagem”, decide partir para a violência física e ameaça, resultando no “revoltante crime de estupro e defloramento”, o qual ela denuncia. O réu “temendo o castigo da justiça”, antes mesmo da acusação ser concretizada, começa a espalhar pela cidade que a lastimada na realidade não era de um “lar honesto”, e sim uma mulher desvirginada por outro há muitos anos.
Além disso, segundo Maria Emília, o réu, querendo escapar da prisão, aproveitou de sua autoridade para coagi-la a produzir “cartas de amor”, cujo conteúdo era previamente decidido por ele. Todo esse trâmite era realizado com ajuda de um guarda municipal de confiança do sub-intendente, responsável por levar os textos escritos por Carlos para a casa da vítima que então copiava-os com sua letra. Esse mesmo policial posteriormente prestou testemunho no processo-crime aqui descrito e afirmou ter ouvido da própria Maria Emília a confissão de que ela realmente não era mais virgem desde antes de sua puberdade. Pelo visto, é antiga a prática de algumas autoridades usarem seus subordinados para interesses pessoais, como prováveis falsos depoimentos.
Os conteúdos dessas cartas anexadas ao processo são bastante interessantes. As da vítima, que segundo ela foram forjadas, são longas juras de amor e fidelidade, além de comentários sobre já ter “se deitado com outro”. Já nos escritos de Carlos há grande preocupação que ela denunciasse-o: “Confiando em Deus espero que [...] me descanse este coração que entreguei a ti e por ti”, “Espero tua resposta a fim de não me pores louco” e “Minha querida não vás mudar de pensamento de uma hora para a outra, e fazeres depois de tantos juramentos cavarem a minha desgraça”. Ainda uma descrição de um sonho terrível, em que Maria Emília casava-se com outro (lembrando que Carlos já havia contraído matrimônio com outra mulher) e que para piorar a situação de seu pesadelo, segundo réu, o noivo “era um mulato (sic) alto de cavanhaque e chapéu picareta”. O racismo é outro elemento persistente da sociedade da época, notório neste último trecho.
As bases do argumento da defesa foram essas cartas e as alegações de cunho moral sobre a vida de Maria Emília. Segundo os advogados de Carlos de Oliveira Paes, os dois tinham um relacionamento extraconjugal consensual e a vítima não era “uma pessoa ingênua, inexperiente, que não pudesse fugir [...] dos galanteios e propostas” caso desejasse.
Transformá-la em uma mulher indigna era importante para terminar com os argumentos da acusação. Na lei vigente da época (o código penal de 1890) o crime de estupro tinha agravantes se a mulher era considerada “honesta”, ou seja, virgem ou viúva, caso contrário a impunidade era quase certa. O resultado dessa estratégia da defesa foi horrível para a vítima: enquanto o julgamento do processo ocorria, Maria Emília precisou refugiar-se em um colégio religioso para evitar as difamações, ameaças e perturbações do réu.
Infelizmente, o acusado conseguiu o que desejava. Na decisão do juiz é citado como provas da improcedência do processo as cartas escritas por Maria Emília, mesmo ela tendo denunciado sua falsidade, e também o depoimento do policial, apesar de ser sabido a relação próxima que tinha com o réu. Assim, Carlos de Oliveira Paes foi absolvido e nada sabemos dos desdobramentos disso para a vida da moça.
Hoje, no código penal sobre crime de estupro não existem agravantes ou atenuantes por posição social, status de relacionamento ou “honestidade” da vítima. Apesar disso, a impunidade segue, mesmo que existam, de fato, avanços nas leis de proteção à mulher. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2023 estipulou-se que ocorram por ano 822 mil casos de estupro no Brasil. Desse total, apenas 8,5% deles chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. A diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão alerta: “O que impede a condenação dos autores de violência é uma visão retrógrada de todo sistema de segurança pública. E uma parte do sistema de justiça ainda não se conscientizou da gravidade da violência sexual para a sociedade brasileira.”
Acervo do Poder Judiciário
Comarca de Lajeado/ Município Encantado/ Localidade: Nova Bréscia
Processo nº 569