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Entrevista com Vanderlei Machado - Parte I

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Vanderlei Machado é professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduou-se em História na Universidade Federal de Santa Catarina em 1994, mesma instituição onde defendeu seu mestrado em 1999. Concluiu doutorado em História na UFRGS, tendo defendido em 2007. Cursou estágio sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Cursou pós-doutorado na UFSC entre 2012 e 2013, mesma instituição onde atualmente cursa novo estágio pós-doutoral. É especialista em história de gênero, notadamente na temática de masculinidades.

1) Vanderlei, a que você atribui seu interesse pelas discussões sobre gênero e, mais particularmente, sobre masculinidades?

R. O interesse pelas discussões sobre gênero e masculinidades surgiu ao longo da minha formação acadêmica. No último ano da graduação, em 1993, freqüentei a disciplina de História de Santa Catarina, com a professora Cristina Scheibe Wolff. Nas aulas da Cristina, professora que recém havia defendido sua dissertação na USP, entrei em contato pela primeira vez com a chamada História das Mulheres. Sua dissertação versava sobre a importância que as mulheres alemãs tiveram na colonização e desenvolvimento da cidade de Blumenau, no Vale do Itajaí, no século XIX.

Antes da formatura, em 1994, conheci a professora Joana Maria Pedro, que estava retornando do doutorado na USP. A tese da Joana, com forte influência da História das Mulheres, já trazia a gênese dos estudos de gênero.1 A categoria gênero de análise encontrou na referida professora uma de suas maiores divulgadoras e incentivadoras, notadamente, no campo da História. Alguns meses após este encontro, fui chamado para ser bolsista de Aperfeiçoamento, com uma bolsa do CNPq, num projeto elaborado pela Joana, intitulado “Autonomia e Criminalização: o controle do corpo feminino (1900-1950)”. Este projeto buscou investigar, a partir de uma perspectiva histórica, o processo de controle do corpo feminino, através da criminalização de práticas como o aborto e o infanticídio, na cidade de Florianópolis, entre os anos de 1900 e 1950. Partimos do pressuposto de que as mulheres de Florianópolis possuíam uma série de conhecimentos que lhes garantiam certa autonomia sobre seus corpos, conhecimentos esses que passaram a ser alvo de uma série de discursos, médicos, jurídicos e de outros setores da sociedade, que buscavam desqualificar e mesmo incriminar tais conhecimentos e práticas. Para tanto, realizamos uma série de pesquisas nos arquivos do Fórum da cidade de Florianópolis e no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, buscando encontrar processos que foram instaurados contra mulheres acusadas da prática de aborto, infanticídio e sonegação de cadáver.

Nessa época, eu ainda não tinha entrado em contato com os textos de Joan Scott e sua definição da categoria gênero de análise. Naquele momento, nossa principal referencia teórica, além de Foucault, era o texto de Gayle Rubin, intitulado A circulação de mulheres: notas sobre a economia política do sexo.2 Neste estudo, a autora, com forte influência marxista, nos mostra, entre outras questões, que a análise das causas da opressão das mulheres forma a base para qualquer perspectiva do que deve ser mudado para que se alcance uma sociedade sem hierarquia de gênero.

Atuar no referido projeto foi fundamental para que eu participasse de grupos de estudos e eventos científicos. Apresentei algumas conclusões parciais da pesquisa no “Fazendo Gênero na UFSC”, um encontro interdisciplinar, realizado em maio de 1996.

Certa vez, encontrei em um jornal a resenha do livro escrito pela filósofa e feminista francesa Elisabeth Badinter, intitulado XY: sobre a identidade masculina.3 Na semana seguinte, fui até uma livraria fazer o pedido do mesmo. A partir da leitura desse trabalho, passei a me perguntar sobre como se dava a construção histórica e cultural das masculinidades.

Historiador Vanderlei Machado
Historiador Vanderlei Machado
2) Você poderia falar, em linhas gerais, sobre a temática de sua dissertação e de sua tese de doutorado? A que fontes documentais você recorreu?

É inegável que o fato de eu participar à época de um grupo de estudos de gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina, favoreceu a percepção de que existia uma lacuna em relação à questão da construção da masculinidade na historiografia brasileira. Diante de tal constatação e movido por inquietações que estavam presentes na sociedade da época, decidi empreender uma pesquisa que buscava perceber quais eram os atributos masculinos valorizados pela sociedade de Desterro/Florianópolis na segunda metade do século XIX.

Os jornais do século XIX foram as principais fontes para a escrita da minha dissertação de mestrado, intitulada O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um modelo burguês de masculinidade em Desterro (1850-1884).4 Nela busquei descrever e analisar como em Desterro, capital da Província de Santa Catarina, na segunda metade do século XIX, num período em que a cidade vivenciava um relativo crescimento econômico, foi se constituído um modelo de masculinidade pautado em ideais burgueses.

Naquele contexto histórico, a imprensa funcionava como um instrumento discursivo modelador e instituidor de práticas sociais. Entre tais práticas, destaco a exigência dirigida aos homens adultos, principalmente da elite, da capacidade de prover suas famílias dos recursos necessários à sobrevivência e à garantia do pagamento de suas dívidas, caso quisessem ser reconhecidos como honrados e honestos por seus pares. Além disso, para os homens da elite, o casamento aparecia como um atributo de honradez e uma possibilidade de ascensão na esfera política. Tais atributos apresentavam-se como capital simbólico de masculinidade e possibilitavam o acesso à cidadania e à intervenção nas decisões dos destinos da cidade e da Província.

Ao propor a construção de uma história de como a imprensa divulgou um ideal de masculinidade, a partir do modelo de homem público, e que, pretendia-se hegemônico, busquei desnaturalizar uma construção, uma representação que é determinada histórica e culturalmente. E com isso, procurei contribuir para um melhor entendimento de como as construções do masculino e do feminino têm sido utilizadas, em contextos históricos diferentes, para justificar relações hierarquizantes entre homens e mulheres.

No final de 2002, me inscrevi para a seleção do Curso de Doutorado da UFRGS. Nesta universidade me interessei por um diálogo com as discussões sobre cidade, imaginário e representações desenvolvidas pela professora Sandra Jathay Pesavento. Este seria um grande diferencial em relação ao que eu vinha estudando, ou seja, inserir a problemática urbana nos estudos sobre masculinidade.

Na UFRGS, além dos trabalhos de Sandra Pesavento, foram de grande importância para mim os estudos da professora Claudia Mauch, que discute o papel da imprensa do final do século XIX, em Porto Alegre, na divulgação de certos valores sociais. Em 2004, fui aprovado para realizar um “doutorado sanduíche” na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, Paris, França, com bolsa da CAPES. Em Paris, fui orientado pelo professor Jacques Leenhardt e freqüentei os seminários do historiador Georges Vigarello, entre outros. As reflexões deste autor sobre o corpo e a beleza enquanto construções culturais contribuíram para que eu passasse a prestar atenção para o fato que as representações de corpo têm uma historicidade e contribuem para reforçar hierarquias de gênero.

Em minha tese, intitulada “Entre Apolo e Dionísio: A imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em Florianópolis (1889-1930)”,5 busquei evidenciar a construção e a divulgação de um modelo hegemônico de masculinidade através da imprensa de Florianópolis, no período compreendido entre 1889 e 1930, avançando temporalmente em relação ao que havia trabalhado no mestrado. Nos artigos divulgados pelos jornais, no período em questão, destacou-se a representação do homem branco, jovem e viril. Este, segundo as prescrições da época, deveria atentar para um código de urbanidade que passava a exigir um maior cuidado com o corpo e o domínio de si. Buscar satisfazer a esse modelo valorizado socialmente era a garantia de que o homem desempenharia bem as responsabilidades que dele se esperava, como a de prover a família, produzir uma prole saudável, ser trabalhador, cumprir seus contratos e ser um bom cidadão. Os jornais fizeram circular representações de gênero, que buscavam constranger as mulheres ao espaço privado, reservando aos homens a esfera pública.

Além dos atributos prestigiantes da masculinidade, a imprensa e os livros escolares divulgavam também como um homem não deveria agir, notadamente nos espaços públicos. A partir da década de 1910, pode-se evidenciar com maior precisão a divulgação de uma série de práticas e representações que visavam coibir comportamentos masculinos que deixavam de ser tolerados nos logradouros públicos da cidade. Entre tais comportamentos estava a prática da embriaguez e o uso da violência como forma de solução de conflitos interpessoais. Naquele contexto, passou-se a exigir dos homens que circulavam pela cidade, certa previsibilidade em suas atitudes.

Busquei demonstrar ao longo da escrita da tese como o processo de urbanização ocorrido na capital catarinense, nas três primeiras décadas do século XX, foi acompanhado da construção de um novo modelo de masculinidade ligado à vida nas cidades.

Vamos conferir na próxima semana a continuidade da entrevista com o professor Vanderlei Machado!

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1 PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianopolis: Ed. UFSC, 1994.

2 RUBIN, Gayle. The traffic in women. In; REITER, Roy. Towards an antropology of women. New York: Review Press, 1975.

3 BADINTER, Elisabeth. XY sobre a Identidade Masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

4 MACHADO, Vanderlei. O Espaço Público como Palco de Atuação Masculina: a construção de um modelo burguês de masculinidade em Desterro – 1850 a 1884. Florianópolis, 1999. 119 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina.

5 MACHADO, V. Entre Apolo e Dionísio: a imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em Florianópolis (1889-1930). Porto Alegre, 2007. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.

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