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Entrevista com Carina Martiny – Parte I

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APERS Entrevista
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Carina Martiny é graduada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2007), mestre em História pela mesma instituição (2010) e doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Já atuou nas redes municipal, estadual e privada de ensino. Atualmente é Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal Farroupilha. Sua dissertação pode ser acessada clicando aqui.

Carina, você poderia falar um pouco sobre a temática do seu mestrado?

Durante o mestrado trabalhei com a temática das elites políticas, centrada na formação e atuação de um grupo de indivíduos que atuava em âmbito municipal. Para isso, centrei a análise no município de São Sebastião do Caí. Tratava-se de um município de grande extensão territorial, englobando terras que hoje pertencem a municípios como Caxias do Sul, Nova Petrópolis, Feliz, São José do Hortêncio e Capela de Santana. A escolha se deu porque esse município possuía ampla documentação disponível e havia se estruturado, administrativamente, exatamente na transição de regime político no país, ou seja, do Império para a República, dado que o ato de criação do município data de 1875 e sua estruturação administrativa adentra a década de 1890. Aquela pesquisa estava interessada em três questões centrais: traçar um perfil da elite política municipal, através do uso do método prosopográfico; compreender o processo de estruturação e funcionamento de um município; e, analisar o impacto, a nível municipal, da mudança de regime político no país. Acompanhar o processo de criação do município e sua estruturação político-administrativa foi fundamental para compreender quem formava o grupo de pessoas que ocupou um dos principais cargos administrativos do município, como legislavam e que vantagens obtinham – tanto para si quanto para os seus – ao ocupar esse espaço. Esse grupo era formado por 38 indivíduos que, durante o período em análise, ocuparam o cargo de vereador.

Para a realização dessa pesquisa utilizei uma documentação bastante diversa, desde atas, correspondência e documentação da Câmara Municipal (fontes estas que estão sob a guarda do Arquivo Municipal de São Sebastião do Caí e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) até os inventários do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Foi possível demonstrar que esses indivíduos compunham também a elite econômica local, tanto de origem luso quanto teuto-brasileira. Essa última característica correspondia à caracterização da ocupação do território por esses dois grupos (lusos e teutos) em momentos distintos dos séculos XVIII e XIX. Ficou evidente que o envolvimento destes indivíduos com a câmara municipal proporcionou a aquisição de benesses para si e para os seus familiares e que a ocupação do cargo lhes permitiu criar algumas estratégias de controle da sociedade local. Quanto ao impacto da mudança de regime do Império para a República foi possível perceber que diversas mudanças ocorreram a nível municipal, desde a troca do nome de ruas até da própria estrutura do poder, tendo surgido neste momento o cargo da intendência, que correspondia ao Executivo municipal. Entretanto, apesar das mudanças, percebe-se que o grupo que antes ocupava o poder em boa medida permanece, passando a defender, em seu discurso, os ideais da República, e não mais os do Império.

Carina Martiny
Carina Martiny
E como foi sua pesquisa de doutorado?

No doutorado mantive o interesse pelo período da passagem do Império para a República no Brasil, porém centrada no processo de estruturação da própria República e em sua governabilidade. Para isso, trabalhei com a documentação de uma liderança política republicana, Júlio de Castilhos. A tese estava estruturada em duas questões centrais. A primeira era compreender como se formava uma liderança política no contexto de mudança de regime político no país. E o caso de Castilhos é interessante porque ele inicia sua vida política exatamente no momento de efervescência da propaganda republicana, militando contra o Império. Ainda que a década de 1880 tenha sido crucial na sua trajetória de ascensão à liderança, ele não ocupou qualquer cargo durante o regime imperial. Mas, chegada a República, se tornaria a principal liderança republicana no Rio Grande do Sul, estando à frente do Executivo estadual por boa parte da década de 1890, chefiando o PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) até a sua morte, em 1903.

Para compreender como essa liderança foi construída busquei analisar diversos aspectos que foram essenciais nesse processo. Iniciei por uma análise do universo familiar, demonstrando que Castilhos pertencia a uma família da elite econômica da província, escravista e envolvida em atividades como venda de gado para charqueadas e envio de tropas de mulas para a região Sudeste. Foram os recursos advindos dessas atividades que possibilitaram a Júlio se formar em Direito em São Paulo e, mais tarde, se manter em Porto Alegre atuando na propaganda republicana. Em seguida, analisei sua atuação no âmbito da propaganda republicana, demonstrando que foi nesse período que Castilhos consolidou sua liderança dentro do partido. Para isso foi essencial sua atuação na formação do PRR, na criação do jornal do partido, A Federação, e na campanha abolicionista. O segundo momento de consolidação de sua liderança se deu no âmbito da política estadual, quando, na condição de presidente do Estado e chefe do partido, buscou manter controle sobre questões da política municipal, como oposições e eleições. Essa consolidação de sua liderança a âmbito estadual deu-lhe também projeção nacional, tendo sido pré-candidato à presidência da República em 1897.

A segunda questão que estruturou a tese girou em torno de compreender os mecanismos pelos quais foi construída a governabilidade nos anos iniciais da República. Ao analisar as relações e ações de Castilhos foi possível compreender aspectos relacionados ao processo de construção da República. Ficou evidente que, desde o início da década de 1890, a preocupação com a consolidação e estabilidade do regime foi central. Isso leva a uma interpretação distinta daquela que separa os anos iniciais da República em dois períodos marcadamente distintos: da Proclamação ao fim do governo Prudente como o período do caos; e a partir do governo de Campos Salles a estabilidade. Quando se analisa as ações de lideranças republicanas como foi o caso de Castilhos, o que se percebe é que havia, desde o início, uma preocupação em consolidar o regime e assegurar sua estabilidade. Neste sentido, essa ideia de caos inicial não nos permite ver essa movimentação; além do que a “estabilidade” característica do governo Campos Salles deve ser compreendida como derivada de todo um movimento anterior em prol do novo regime.

É importante destacar que nessa trajetória de escrita da tese a influência do trabalho de outros historiadores foi essencial. Cito aqui, especialmente, os estudos de Cláudia Viscardi, Jonas Vargas, Luiz Alberto Grijó, Tassiana Saccol, Vítor Fonseca Figueiredo.

Como é possível perceber, acompanhar a formação da liderança de Castilhos, considerando inclusive seu universo familiar, e, ao mesmo tempo, estudar a construção da governabilidade republicana exigiu trabalhar com um universo bastante variado de fontes. De um lado, era preciso buscar fontes relativas à vida familiar e pessoal de Júlio de Castilhos como documentos eclesiásticos, cartoriais e correspondência; por outro lado, para compreender esses mecanismos de governabilidade em curso, era necessário acessar o universo político e, para isso, optei, ao invés de trabalhar com documentação oficial, do governo, em trabalhar com a correspondência pessoal de Castilhos que tratava de questões políticas, além do uso de jornais.

O que fica evidente, a partir da minha resposta nessas duas perguntas iniciais, é que o grande tema de minha pesquisa é a construção do Estado republicano. Estudá-lo é essencial para compreender a evolução política de nosso país através dos mecanismos de funcionamento. Sobre isto, chamei atenção para se notar o papel dos municípios na estruturação da federação e da República em si. Cheguei assim às eleições, que eram a grande preocupação das lideranças republicanas para garantir não só o controle sobre elas, mas também garantir a manutenção da própria República em construção e sua legalidade, mesmo que controversa. Isto denota, antes de mais nada, a grande importância das eleições na história republicana brasileira, hoje visto como o maior acontecimento dentro de uma democracia representativa. Saber que esse evento era marcado por fraudes, que havia tentativas de controlar o voto dos eleitores e que grande parte da população estava excluída de participação, nos faz querer lutar, cada vez mais, por este direito consolidado pela Constituição de 1988.

Como foi a passagem da observação de um grupo social para um caso mais particularizado, ainda que você não tenha deixado de inscrever Castilhos em uma coletividade?

Essa mudança de perspectiva ocorreu em função da opção de trabalhar com um indivíduo sobre o qual existia ampla documentação ainda não trabalhada. Obviamente que essa opção acarretou uma série de outras mudanças no âmbito da pesquisa. Se antes era preciso buscar informações sobre vários indivíduos, agora a busca documental se concentrava em um nome. Claro que não é tão simples quanto possa parecer, pois a partir desse nome, de suas relações, outros nomes surgem e acabamos ampliando a busca por documentação a esses outros nomes. A mudança mais significativa, entretanto, ocorreu no campo metodológico. Se no mestrado o método prosopográfico foi central, ainda que a micro-história italiana tenha estado presente, agora eram os fundamentos desta última que guiava a pesquisa e escrita da tese. Metodologicamente, o cruzamento e análise intensiva das fontes foram essenciais nesse processo; teoricamente, assentar a análise em uma visão holística e na ideia de que é possível explicar um processo histórico reduzindo a escala de observação caracterizaram o trabalho no doutorado.

Mas você assinalou bem que Castilhos estava inserido em uma coletividade, ainda que minha intenção nunca tenha sido apresentar Castilhos como representante dessa coletividade. O que procuro demonstrar é que ele é um, entre tantos outros indivíduos que atuaram politicamente na implementação da República brasileira. Quando utilizo a figura de Castilhos para compreender como um indivíduo podia se tornar uma grande liderança republicana não estou querendo afirmar que era aquele o caminho trilhado por todos os líderes republicanos. Estava apenas apontando um caminho possível, entre muitos outros, para um jovem assumir posição de liderança política naquele contexto de intensas mudanças. Também é importante assinalar que a tese, ainda que narrativamente centrada na figura de Júlio de Castilhos, trata do processo de construção de uma liderança republicana no final do século XIX e início do século XX e de como essa República foi construída. Castilhos foi uma opção metodológica e um recurso narrativo para contar a história de um processo histórico mais amplo.

Confira na próxima semana a continuação da entrevista com a historiadora Carina Martiny!

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