Entrevista com Claudia Lee Williams Fonseca - Parte I
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Claudia Lee Williams Fonseca graduou-se em Letras - University of Kansas (1967), cursou mestrado em Estudos Orientais - University of Kansas (1969), doutorado em Sociologia - École des Hautes Études en Sciences Sociales (1981) e doutorado em Etnologia - Université de Nanterre (1993). Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na graduação e no pós-graduação. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: grupos populares, família, antropologia, adoção e gênero, antropologia do direito, antropologia das ciências. Em dezembro de 2021, foi eleita integrante da Academia Brasileira de Ciências. É autora de inúmeros livros e artigos, dentre os quais destacamos “Nos caminhos da adoção” (Cortez, 1995) e “Família, fofoca e honra: a etnografia de violência e relações de gênero em grupos populares” (UFRGS, 2000).
Claudia, você pode narrar brevemente o percurso que a levou dos Estados Unidos ao Brasil? Como as diferenças culturais entre os dois países e os estranhamentos consequentes contribuíram na sua atuação como antropóloga?
O percurso mais curto diz respeito ao namorado brasileiro (hoje marido) que arranjei durante meu Mestrado em Estudos Orientais na University of Kansas. Ganhei bolsa plena para fazer doutorado em Antropologia na Columbia University (Nova Iorque), mas logo no início daquela experiência, com 21 anos de idade, decidi que meu caminho era outro.
Tentamos naquela época (1970) voltar ao Brasil para solidarizar com os cidadãos comuns que resistiam pacificamente contra a ditadura militar. Entretanto, dentro de seis meses, nos demos conta que nosso projeto não era muito plausível. Encontramos um cargueiro barato e nos mandamos de mala e cuia (naquela época era violão e máquina de escrever) para a Europa. Vivemos sete anos em Paris, os primeiros três anos como estrangeiros indocumentados encontrando biscates no mercado clandestino de trabalho. Enquanto no Brasil tinha sido a violência arbitrária da ditadura que mais marcou minha memória, a França trouxe a visão de um mundo – de efervescência sindical e grande solidariedade social -- bem diferente dos USA.
Quando, no final dos anos 1970, a reabertura democrática nos trouxe a vontade de tentar a vida mais uma vez no Brasil, o choque cultural foi grande. Em contraste com tudo que eu tinha vivenciado na França, encontrei uma quase total ausência de serviços públicos de apoio a famílias. Na França eu sempre frequentei a saúde pública, coloquei meus dois filhos na creche pública, e depois na escola pública (que existe só em turno integral) onde conviviam com crianças tanto imigrantes e pobres como franceses “de raiz” bem abastados. Aqui, no Brasil, tinha a impressão de que a mãe ou pai que não tinha ou muito dinheiro ou uma retaguarda sólida de família extensa estava com sérios problemas. Sem dúvida por isso que acabei fascinada pela dinâmica das redes familiares de ajuda mútua – e, por afinidades pessoais assim como por preocupação social, acabei aprofundando esse tema entre grupos das classes populares.
Você pesquisou no acervo do Arquivo Público nas décadas de 1980 e 1990. Que lembranças você tem daquela experiência?
Sorte. Tive uma sorte danada chegar naquele prédio velho (lembro da cor amarela), ensolarado e com grandes mesas aconchegantes abertas ao público. A ironia é que não vou lembrar do nome dela...mas, na época, a diretora do AP era uma historiadora que realmente entendia de pesquisa. Depois de eu explicar algo dos meus interesses, ela me trouxe uma pilha de dossiês intitulados: “Apreensão de Menores” e dali sai voando. Também foi ela que me indicou uma lei que, naquela época, estipulava a gratuidade para pesquisadores do arquivo que queriam fazer fotocópias de determinadas páginas dos arquivos. (Sei, é difícil acreditar.) Aí, até hoje, tenho um arquivo de papelão bem guardadinho com cópia de todos os processos que consultei. A infraestrutura – na forma da diretora e das facilidades que o Arquivo Público me proporcionou -- foi fundamental para mim. Sem ela, jamais teria chegada nas inspirações que tanto alimentaram minhas reflexões subsequentes.
Você pode nos falar um pouco mais sobre os documentos consultados?
Hoje, diversos antropólogos já nos brindaram com textos metodológicos sobre como virar as páginas de um processo jurídico (Olivia da Cunha, Adriana Vianna, etc.). Naquela época, contudo, eu ainda não tinha lido grande coisa sobre esse exercício. Para mim, foi como chegar numa ilha exótica, ter que aprender a linguagem dos nativos, decifrar sua caligrafia, situar cada novo ator, conter minha frustração quando faltava um desfecho claro ou quando o dossiê parecia de outra maneira truncado.
Mas, posso te dar um pequeno exemplo empírico da riqueza desse material. Retomei esses dias minha caixa de papelão para procurar um certificado de batismo de 1921. Notei que, em vez dos avós (como é o caso da certidão de nascimento civil), a Igreja pedia o nome dos padrinhos. E me perguntei: o quê significaria essa mudança histórica que passa do registro dos compadres para o registro dos avós consanguíneos nos documentos de nascimento? Recém tinha lido um trabalho de R. Slenes (1999) sobre a importância do compadrio para famílias escravas em determinado momento da história paulista. E comecei a pensar sobre a maneira como os documentos “oficiais” refletiam não só um sistema de valores, mas também condições materiais em relação, por exemplo, à expectativa de vida. Depois de tudo, esses documentos identificando o recém-nascido eram estabelecidos não só para assinalar o pertencimento familiar, mas também para nomear alguém “a mais” que poderia cuidar da criança caso que viesse a ficar “órfã”. Será que os avós dos grupos populares viveriam o tempo suficiente para cumprir esse papel de cuidador substituto? Ou seria mais realista nomear alguém da mesma geração dos pais? Enfim, ainda não cheguei a aprofundar esse assunto, mas é um exemplo de como os arquivos encerram um baú infindável de tesouros.
Em todo caso, a gente dá “graças a Deus” que existem esses documentos preservados. Mais recentemente, eu estava tentando pesquisar nos hospitais-colônia para os pacientes de “lepra” (que existiram grosso modo entre 1940 e 1985). Fiquei impressionado o quanto dessa história tinha sido perdido. Encontrei livros de registro (de ingressos) atirados no canto de um escritório, esfacelando com a umidade. Outros documentos -- queimados em algum incêndio ou jogados fora por uma faxineira zelosa -- simplesmente não existiam mais. Muitas vezes, havia administradores e pesquisadores locais tão abismados quanto eu com essa negligência da história, mas sem suporte institucional, não conseguiam fazer grande coisa. Então, cada vez que encontro qualquer coisa preservada de forma profissional, com apoio institucional firme, dou um suspiro de alívio.
Vamos acompanhar, na próxima semana, a continuação da entrevista com a professora Claudia Fonseca!