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Entrevista com Helen Osório - Parte III

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana anterior, Helen Osório realizou um breve balanço da produção historiográfica no campo da História Agrária. Confira a parte final de sua entrevista!

3) Ultimamente, a metodologia serial, da qual você é um dos expoentes no Rio Grande do Sul, vem sofrendo questionamentos. Qual o potencial dessa metodologia e o que ela tem a oferecer à escrita da História na atualidade? Existem dificuldades específicas dos acervos locais para a elaboração de pesquisas seriais?

A metodologia serial é aplicável a vários domínios da história: da história econômica à história da arte, passando pela social. Ela nos possibilita perceber a evolução, a mudança, o ritmo da presença de um objeto ou variável no tempo. Ora, poder determinar esses movimentos é matéria prima para a produção do conhecimento histórico. É possível construir séries de “objetos” que a princípio não seriam quantificáveis. Quando a população escrava crioula passa a ser relevante em determinada comunidade? Como evoluiu e intensificou-se (ou não) o tráfico de africanos escravizados para uma região? A partir de quando livros com determinada temática surgem e passam a ser frequentes nas bibliotecas particulares? Qual a evolução das condições para a alforria presentes nas cartas de liberdade em Porto Alegre? Parecem-me questões relevantes para diferentes pesquisas. A imaginação controlada (a partir de uma cuidadosa crítica da fonte utilizada) do historiador pode produzir séries de variáveis surpreendentes e originais. Os meios informáticos atuais também auxiliam na renovação do método. Portanto, creio que continua sendo uma metodologia muito útil para para vários campos da pesquisa histórica e que não deva ser descartado.

Helen Osório - APERS Entrevista
Helen Osório

Quanto às dificuldades arquivísticas, eu mencionaria o incompleto levantamento e quantificação dos diferentes tipos documentais, situação ainda existente em muitos arquivos. Conhecer o número total de documentos de determinado tipo e sua distribuição no tempo é importante para se decidir se trabalharemos com a totalidade da documentação ou se realizaremos uma amostragem, por exemplo. Essa informação também é muito importante para a planificação geral de uma pesquisa.

4) Por outro lado, nos seus últimos trabalhos percebe-se a influência de uma micro-história de feição mais econômica. Você acha que a micro-história, no que se refere ao Brasil colonial, estaria condenada a ser uma historiografia incompleta, feia, “tapuia”, como qualifica João Fragoso, devido às dificuldades para o acompanhamento nominal dos atores históricos?

Infelizmente tendo a concordar com João Fragoso. O acompanhamento nominal dos sujeitos é dificultado por duas ordens de fatores. Por um lado, deve-se a uma característica histórica da colonização lusa: a imensa mobilidade da população, que permitiu a expansão de seu território. Como diz a canção “Paratodos” de Chico Buarque: “o meu pai era paulista/ meu avô, pernambucano/ o meu bisavô, mineiro/ meu tataravô baiano…”. A população negra escravizada sequer tinha direito a um sobrenome; adquiria-o apenas quando conseguia a alforria. Acresce-se a esses fatores, a inexistência de regras estabelecidas de nominação no mundo luso, e a possibilidade recorrente de uma pessoa trocar de nome durante sua vida. Portanto, é muito difícil “perseguir” um indivíduo ou um grupo com essas características (além da abundância de homônimos). Por outro lado, estão as dificuldades arquivísticas. Sabemos que o Estado brasileiro nunca primou pela preservação da documentação. Temos lacunas imensas de documentação. Ao lado disso, a incompleta classificação e indexação dos documentos e a falta de instrumentos de busca prejudicam esse tipo de pesquisa. Não quero generalizar, pois o estágio de organização dos arquivos no Brasil é muito variável. À medida que essa organização avance, junto à digitalização da documentação e à disponibilização de programas que permitam a busca nominal, teremos melhores condições de realizar esse tipo de pesquisa. De qualquer forma, a multiplicação de estudos de trajetórias de pessoas e grupos atestam os esforços de pesquisa dos historiadores brasileiros e seu relativo sucesso. Ou seja, mesmo que não se consiga utilizar cabalmente o método, a “inspiração micro-histórica”, e a redução de escala tem trazido ganhos palpáveis para a historiografia.

5) A que você atribui o pouco interesse dos historiadores sul-rio-grandenses pela história econômica e demográfica, que segue sendo realizada em outros lugares do Brasil, particularmente nas universidades da região Sudeste?

Não tenho conhecimento suficiente para dar uma resposta mais fundamentada. Em sua origem, creio que a existência abundante das listas nominativas de habitantes para São Paulo (e que incluía o Paraná) foi um incentivo aos estudos de demografia histórica nesses estados. Universidades mais antigas (penso na USP), e com tradição em estudos demográficos e de história econômica também foram as precursoras em cursos de pós-graduação. Enfim, este é um tema de investigação para os historiadores da historiografia. Atualmente, creio que o pouco interesse pela história demográfica e econômica por esses pagos deve-se a sua minúscula presença nos cursos de graduação, onde preponderam, de longe, abordagens políticas e culturais, secundadas por uma história social. Se não são apresentados aos alunos textos dessas áreas, que os induzam a conhecê-las e compreender os ganhos analíticos dessas perspectivas, é quase impossível que desejem desenvolver pesquisas que ao menos tangenciem essas abordagens. A verdadeira ojeriza dos alunos de história a qualquer expressão matemática é um imenso obstáculo. No mínimo, os alunos deveriam ser treinados para saber ler e interpretar gráficos e tabelas simples. Aproximar-se destes “mundos” desconhecidos recém na pós-graduação implica em grandes esforços individuais que poucos alunos estão dispostos a fazer, ainda mais com os prazos de realização de mestrado e doutorado.

As grandes contribuições da história demográfica para a história social (família escrava, relações de parentesco, estudos das famílias em geral) produziram aproximações entre as duas e a utilização das fontes típicas da demografia histórica pela última (registros paroquiais e as escassas fontes de tipo nominativo, como os róis de confessados). A presença de Ana Sílvia Scott como professora da Unisinos durante vários anos ensejou um intercâmbio e uma influência muito positiva sobre os estudos de história social. Martha Hameister estudou estratégias sociais e familiares na formação da vila de Rio Grande através dos registros paroquiais. Pesquisas sobre compadrio na fronteira oeste, de Farinatti, Matheus e Max Ribeiro desvelaram as migrações para o avanço daquela fronteira no séc. XIX e estratégias sociais de diferentes grupos. Já Luciano Costa Gomes fez um uso intensivo dos róis de confessados de Porto Alegre para o estudo da escravidão e da estrutura econômico-demográfica.

6) A historiografia do Rio Grande do Sul tem investigado o conceito de fronteira e a inter-relação com os países platinos. A seu ver, esse seria um campo no qual a historiografia do Brasil meridional teria a contribuir com a historiografia brasileira, em lugar de consumir a influência teórico-metodológica das universidades do Sudeste? Temos uma “troca desigual” no “mercado historiográfico”, parafraseando Ginzburg e Poni?

Talvez no final dos anos 90 essa troca tenha sido desigual. Mas creio que a qualidade e a inovação das pesquisas produzidas sobre a fronteira meridional impuseram-se: desde a precursora Susana Bleil de Souza, e depois Guazzelli, Farinatti, Kuhn, Thompson Flores, Tiago Gil, Menegat, Thiago Leitão de Araújo, Peter de Lima, Caratti, Vargas, Matheus, Gularte, entre outros. Sob vários enfoques, mostraram-se as dinâmicas sociais e econômicas de constituição e “usos estratégicos” da fronteira e contribuímos substancialmente para “desnacionalizar” a questão. Derrubamos muitos anacronismos e a leitura nacionalista predominante. O diálogo com os colegas uruguaios e argentinos foi fundamental. A meu ver, falta ainda uma maior troca e reflexão conjunta com a historiografia da fronteira oeste e norte do império português e depois Brasil.

7) Seus trabalhos caracterizam-se por uma sólida base documental. Em um cenário historiográfico em que a pesquisa empírica sofre questionamentos cada vez maiores, qual a importância que você vê nos arquivos?

Em minha concepção de história, este conhecimento constrói-se a partir de problemas e de fontes, que são mediadas por sua crítica, pela metodologia e teoria. A especificidade do conhecimento histórico e do ofício do historiador é este. Portanto, todos os repositórios de fontes, os arquivos, são fundamentais, sejam de fontes manuscritas, impressas, imagéticas, sonoras, fílmicas, orais, digitais. Os arquivos no Brasil sempre foram instituições maltratadas: carentes de meios físicos e financeiros, de laboratórios de restauro, de serviços de microfilmagem e de pessoal. Espero que nos próximos tempos os arquivos recebam mais atenção e verbas, de todas as esferas de governo. Infelizmente ainda não se considera os arquivos no mesmo patamar dos outros bens do patrimônio artístico, histórico e cultural que devam ser protegidos, resguardados, restaurados.

Os arquivos são, além de local de trabalho, um local privilegiado da sociabilidade do historiador. Aí se compartilham descobertas, dúvidas e idéias com outros historiadores. Tratando-se de pesquisa com manuscritos, nada substitui o contato direto com a materialidade da fonte. A fotografia digital poupa tempo e dinheiro, e é um sucedâneo relativamente eficaz frente à escassez de recursos. A consulta e leitura in loco é insubstituível; nela avança-se e retrocede-se pelas folhas, recompondo a lógica do documento que às vezes nos escapou na primeira leitura e observando-se anotações nas margens. Esse “túnel do tempo” é experimentado por cada novo aluno que introduzo no métier. Praticamente todos eles lembram e referem-se a esta primeira experiência profissional e de encantamento.

A digitalização dos acervos, que deve avançar no futuro, produzirá um certo esvaziamento físico dos arquivos, mas as instituições arquivísticas manterão sua centralidade para a produção do conhecimento histórico.

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