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Entrevista com Paulo Afonso Zarth - Parte 1

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Paulo Afonso Zarth é graduado em Estudos Sociais (1980) e em Geografia (1983), ambos cursos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Fez mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense, respectivamente em 1988 e 1994. Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2012). É autor de “História Agrária do Planalto Gaúcho 1850-1920” (1997) e de “Do Arcaico ao Moderno – o Rio Grande do Sul Agrário do século XIX” (2002), ambos pela Editora Unijuí. Foi, por muitos anos, professor na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Também trabalhou na UPF e na UFFS, como pesquisador visitante/CAPES.

1) Paulo, em primeiro lugar, gostaria de dizer que é uma grande honra para o Arquivo Público contar com a sua entrevista. Você pesquisou em nosso acervo nos anos 80 e 90 para sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado. Você poderia nos contar algumas de suas experiências de pesquisa naquele período?

Rodrigo, considero muito importante o convite para falar sobre o Arquivo Público, pois é uma instituição fundamental para a cultura rio-grandense e para profissionais da história, em particular.

Vou repetir aqui, pelo menos em parte, o que escrevi num artigo anterior sobre minha experiência como usuário do Arquivo. A publicação do texto intitulado “A importância dos arquivos do poder judiciário para a pesquisa histórica”, tem por base o acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e indica sua grandeza para a história.

Ao ingressar no PPGH da Universidade Federal Fluminense, em 1984, fui apresentado às fontes judiciais, através das boas recomendações da professora Maria Yedda Linhares e do orientador da dissertação, professor Ciro Flamarion Santana Cardoso. Mais tarde, no curso de doutorado, iniciado em 1989, continuei minhas pesquisas nos arquivos do judiciário, sob orientação do professor Luiz Carlos Soares. Entusiasmado com a ideia, desembarquei em Porto Alegre e fui diretamente ao Arquivo Público.

2021 06 09 Paulo Zarth
Paulo Afonso Zarth

Fui recebido com atenção pelos funcionários mas a visita causou uma certa surpresa, pois não era muito comum a presença de historiadores interessados em consultar um conjunto enorme de documentos. (Foram mais de mil maços de inventários post-mortem e processos-crime).

Logo se percebeu que solicitar a leitura de um maço de inventário de cada vez seria inviável. O bom senso das arquivistas, considerando ainda a escassez de funcionários, permitiu-me trabalhar no interior do arquivo com acesso direto aos documentos. Confesso que foi uma experiência fantástica encarar os milhões de documentos históricos naquelas prateleiras, totalmente a disposição para serem revelados à história. Trabalhei durante vários meses no interior prédio. Almoçava numa pequena lancheria localizada no patio interno para não perder tempo. Lembrem que não existia aconfortável câmera fotográfica digital que tanto nos facilita a vida hoje em dia. O jeito era copiar à mão o que era importante e passar os dados para matrizes elaboradas especificamente para a pesquisa. Durante meses eu era um solitário pesquisador, trabalhando no interior do arquivo, até chegar um jovem colega norte-americano que pesquisava a história de chefes políticos do Rio Grande do Sul e do Uruguai.

Cabe lembrar que antes de “ir a campo”, os colegas e professores da UFF me alertaram sobre possíveis dificuldades em localizar os inventários, pois eram comuns os relatos sobre documentos encontrados nos locais mais escandalosos do ponto de vista da preservação. Além disso, em alguns estados eles estavam espalhados em diversos municípios. Para sorte minha, os inventários do Rio Grande do Sul estavam todos num mesmo arquivo, bem preservados e guardados em prédio apropriado para armazenar documentos.

Nem tudo era um campo florido. Poucos funcionários, poucos recursos financeiros e trabalhadores terceirizados sem a qualificação de arquivista complicavam a vida do pessoal. Ouvia as queixas e me solidarizava. Certa vez me disseram que a maior parte da documentação mais antiga seria queimada para abrir espaço. Não sei se era real ou estavam fazendo algum tipo brincadeira comigo, mas em tom apavorado pedi que não deixassem fazer tal crime e me propus a recolher o material para levar para alguma outra instituição. Felizmente nada disso aconteceu.

2) De alguma forma, você acompanhou as modificações da nossa instituição nas últimas décadas. Você poderia nos contar como você percebe a evolução do Arquivo Público desde a época de suas pesquisas iniciais?

A montagem de estrutura especializada para receber pesquisadores e pesquisadoras, a incorporação de arquivistas com formação acadêmica na área, a implantação de sistema informatizado com acesso pela internet são modificações significativas. O acesso de conteúdo e informações através da internet, que não existia nos anos 80, oferece facilidades para a pesquisa inicial.

3) Você foi um dos pioneiros na utilização de inventários e processos-crime na pesquisa histórica acadêmica no Rio Grande do Sul. Desde então esses tipos documentais foram largamente utilizados pelos historiadores. Como você avalia o desenvolvimento da historiografia nas últimas décadas?

Na época, as fontes tradicionalmente utilizadas, chamadas de “sínteses globalizantes”, eram criticadas pelo seu alto grau de generalização e superficialidade. Tais fontes relativamente fáceis de consultar, dizia-se então, eram representadas pelos relatórios do presidente da província, relatos deviajantes, de cronistas e relatórios estatísticos, por exemplo. Tais escolhas ganham em facilidade de acesso às informações, mas perdem em riqueza e fundamentalmente não permitem observar fatos relevantes que são omitidos naquele tipo de fonte.

Sem desprezar aqueles documentos, entendia-se que era mais adequado construir uma totalidade do tema pesquisado a partir das próprias unidades produtivas e administrativas, organizando séries, embora isso implicasse em um trabalho muito maior, mas certamente mais rico e eficiente para trazer à luz elementos pouco conhecidos nas fontes normalmente utilizadas, em se tratando de história econômica e agrária. Reunir dados nos arquivos do poder judiciário fazia parte, na época, das novas concepções de pesquisa em curso na historiografia brasileira tanto no que se refere aos temas como em relação às fontes. Foi por isso que cheguei ao Arquivo Público.

4) A gente percebe, desde então, claramente um deslocamento de pesquisas em escala estadual ou regional para trabalhos mais circunscritos geograficamente. Qual a sua opinião a respeito?

Numa perspectiva ampla, esta questão tem a ver com o clássico debate sobre o conceito de região e sobre as relações local-global. Nesse sentido, somos herdeiros dos trabalhos desenvolvidos pela história e pela geografia francesa desde o início do século XX. O grande Marc Bloch afirmava que as pesquisa regionais, apoiadas por sólida erudição e conhecimento histórico, seriam a única forma de reconstituir a história francesa em toda sua diversidade. Vale a pena citar:

"que las monografias regionales, apoyadas en sólida erudición alimentada por una amplia cultura histórica, son lo único que puede restituirnos poco a poco, en su viva diversidad, la imagen de la vieja sociedad francesa - o, por decir mejor, de la sociedad francesa de todos los tiempos, tanto presente como pasado- es esa una verdad cuya evidencia se impone a todos los historiadores com mayor fuerza que ninguma otra." (BLOCH, Marc. La Historia Rural Francesa. Barcelona, Editorial Crítica. 1978. p.23)

Por outro lado, um movimento crítico da historiografia brasileira dos anos 80 apontou os limites das sínteses globalizantes, comentadas acima. Ou seja, foi uma produtiva crítica contra as publicações amplamente difundidas dedicadas a reunir aspectos considerados relevantes do ponto de vista econômico e político da história brasileira. Grandes ciclos econômicos, a hegemonia das pesquisas sobre as grandes lavouras para exportação, as “plantations”, por exemplo.

No caso rio-grandense, esse movimento produziu, e está em franca atividade, dezenas, talvez centenas, de pesquisas riquíssimas. Muitas delas acompanhei através de inúmeras bancas de avaliação de teses e dissertações elaboradas a partir de fontes municipais. De fato, esta opçãosignificou um enorme aprofundamento do conhecimento histórico, considerando que os recortes assim delimitados no espaço e no tempo permitem recolher e analisar as fontes de forma exaustiva.

É claro que estes trabalhos não podem ser confundidos com as antigas monografias municipais que eram descritivas ou analisadas sem considerar o debate acadêmico, ao sabor de simples opiniões dos autores ou autoras.

Estes novos trabalhos com foco bem recortado, produzidos nos programas de pós-graduação em história, revelam experiencias econômicas e sociais que podem colocar em questão o pensamento dominante sobre determinados temas.

5) Da mesma forma, ainda que não seja uma tendência geral, diversos trabalhos recentes têm dado preferência às análises qualitativas, em face da quantificação. Como você encara essa questão? O que a história serial tem a oferecer?

A discussão sobre análise qualitativa e análise quantitativa é tema de amplo debate nas ciências humanas de modo geral. Existe a tentação de explicar a realidade social a partir seu enquadramento em um modelo matemático. Na economia esta tendência é mais acentuada. No caso da história, a ideia de escrevê-la de modo totalmente quantitativa foi discutida nos anos 50 e 60 e me parece superada.

A História serial desenvolvida pelos dos historiadores franceses não pretende ser uma quantificação pura e simples. Essa forma de organizar os dados é muito rica para demonstrar mudanças e continuidades em determinados períodos, assim como relações com condições sociais e culturais. As séries organizadas para meu trabalhos, sempre seguindo a tradição francesa, foram muito úteis e fundamentais para as análises da situação específica regional.

Através do levantamento de dados dos inventários post-mortem foi possível organizar algumas séries estatísticas com informações das próprias unidades produtivas, o que deu segurança maior do que a oferecida pelos relatos dos viajantes, por exemplo. Assim, consegui elaborar quadros com os preços das terras, com a produção pecuária e agrícola – tanto seu perfil como sua evolução – e com o número, as condições de vida e o preço dos trabalhadores escravizados utilizados em uma estância. Além desses dados que permitiram organizar algumas séries, os inventários forneceram informações singulares como os mecanismos de endividamento e de comercialização e de consumo.

Para tanto, elaborei matrizes para facilitar a coleta dos dados e a organização de séries estatísticas. As séries homogêneas, organizadas a partir dos inventários e de outras fontes locais, permitiram montar um quadro alicerçado nas próprias unidades produtivas, proporcionando detalhes que outras fontes genéricas não permitem. Essa experiência me parece justificar o bom uso da história serial.

Confira na próxima semana a continuação da entrevista com Paulo Afonso Zarth!

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