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Entrevista com Thaís de Freitas Carvalho - Parte I

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Thaís de Freitas Carvalho é licenciada em história pela Universidade Federal de Pelotas (2010), mestre em História pela mesma instituição (2013, dissertação disponível aqui) e doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2021, tese disponível aqui). Atuou como professora substituta na Universidade Federal do Rio Grande (2014-2016). É pesquisadora na área de História Cultural, noite e boemia.

1) Thaís, você pode nos relatar brevemente os seus percursos de pesquisa desde o TCC até o doutorado?

Com prazer! Mas antes, quero dizer que me sinto particularmente honrada com esse convite para contribuir ao blog do APERS, instituição que considero patrimônio inestimável do nosso estado e exemplo para inúmeras entidades de conservação no país. Fico muito feliz de ter o meu trabalho reconhecido por aqui.

Bem, voltando às origens de minha trajetória na pesquisa histórica, é impossível não atribuir ao bar Liberdade um papel muito importante nesse percurso. Nos últimos anos da graduação em História na UFPel, pelos idos de 2008, iniciei a pesquisa que faria parte de meu trabalho de conclusão, o qual se propôs a narrar um pouco da história e das particularidades daquele local, que consistia em verdadeiro reduto do choro na cidade de Pelotas. Nessa incursão inicial pela noite popular pelotense, trabalhei bastante com História Oral e etnografia, o que me possibilitou sair do casulo da timidez e desfrutar mais abertamente das dores e das delícias da pesquisa com o tempo noturno. Ao final do TCC, me vi gostando do “garimpo” inevitável que faz parte dessa busca e também me afeiçoei particularmente a como esse tema mexe com a memória das pessoas.

Muitos de meus entrevistados do bar Liberdade lembravam de histórias mais antigas, que remetiam aos tempos de infância, em que seus pais, nas décadas de 1930 e 1940, faziam parte de verdadeiros circuitos de sociabilidade conectados pelo rádio e por serenatas nas ruas da cidade. Isso me estimulou a tentar visualizar que Pelotas noturna era essa, a qual, mesmo do lado de fora dos clubes, conseguia conectar pessoas comuns por meio de outras redes. A partir daí surgiu a pesquisa do mestrado, onde me dediquei a traçar um panorama das ocorrências noturnas que permaneceram preservadas nos processos-crime da Comarca na década de 1930, com foco especial naquelas que comunicavam sobre hábitos da sociabilidade noturna popular no espaço público.

Diante das múltiplas ocorrências noturnas que apareceram nesse recorte – que abarcou desde defloramentos até brigas em bailes –, saltaram aos olhos as possibilidades de uma análise mais aprofundada sobre as brigas em bares, as quais comportavam uma série de elementos cujas relações de permanência no tempo e no espaço me intrigavam bastante. E assim surgiu a ideia da tese de doutorado, em que me debrucei sobre os processos específicos das ocorrências noturnas em bares estabelecendo um diálogo com as fontes impressas. Quis entender as solidariedades e a violência que perpassam essa sociabilidade noturna de esquinas e armazéns; uma sociabilidade ao mesmo tempo fortuita e perene, e que é capaz de conferir paradoxalmente singularidade e ao mesmo tempo uma universalidade quase “mística” a esses espaços. E, bem, é justamente por não se sentir muito satisfeita com as explicações metafísicas que o pesquisador adora “desmistificar”, dissecar e compreender essas engrenagens ocultas, ainda que esses esforços apenas nos aproximem desse fim. Talvez seja por isso que, no fundo, nossas pesquisas jamais terminam… respondemos algumas questões e herdamos outras mil pra seguir (e que bom!).

2) Qual foi o papel das fontes custodiadas no Arquivo Público nesse trajeto?

As fontes do APERS foram absolutamente essenciais. Em princípio, porque vi nos processos-crime uma das fissuras capazes de deixar escapar narrativas ricas sobre o tempo noturno; da mesma forma, são um dos poucos registros que temos em que os relatos de sujeitos de classes subalternas se fizeram ouvir e, principalmente na fase inicial do inquérito policial, são transcritos com pouca interferência de advogados e promotores. Após a pesquisa da dissertação, pude comprovar a riqueza dessas fontes e a multiplicidade de análises e cruzamentos possíveis, o que acabou levando ao projeto da tese. Não tenho dúvidas de que o atendimento e a organização do APERS no tocante à pesquisa desempenharam papel fundamental no meu interesse em seguir trabalhando com processos. Infelizmente, essa valorização da pesquisa e o cuidado com as fontes não são características comuns a todas as instituições.

Historiadora Thaís de Freitas Carvalho
Historiadora Thaís de Freitas Carvalho

3) A que você atribui seu interesse pela cultura popular noturna e pelos espaços noturnos de sociabilidade?

Desde criança, a noite exercia um fascínio sobre mim. Gostava do clima de jogos e camaradagem que reinava na casa dos meus pais ao receberem os amigos nas noites de final de semana. Nasci e cresci em um bairro de pescadores em São Lourenço do Sul, à beira da Lagoa do Patos e do Arroio São Lourenço, onde não era preciso andar 200 metros ao final do dia para cruzar com ao menos um botequim cheio de homens nos balcões, mesas de bilhar e um cheiro forte de bebida. Ao mesmo tempo, meus avós – sobretudo meu avô materno, que foi pescador –, lembravam muito das histórias que cercavam os “traguinhos” nos botequins e da cumplicidade que unia – e às vezes separava – os homens nesses locais. As consequências disso para as mulheres tampouco passavam despercebidas, com inúmeros casos, rememorados por minha avó e minhas tias, de situações dramáticas enfrentadas por mulheres tendo que gerir casa, filhos e ainda lidar com a intoxicação de seus maridos. Mas ao lembrarem dessas histórias todos riam, ou balançavam a cabeça em tom de leve reprovação a uma “fase difícil”, e talvez essa complacência tenha me incutido uma curiosidade persistente sobre esses espaços e o tipo de vínculo que parecia se estabelecer ali.

Já na graduação, percebi que muito se escrevia sobre os clubes de Pelotas e o quão famosos eram seus bailes e carnavais do passado, mas essa historiografia raramente tinha foco específico no tempo noturno e suas implicações. As noites do espaço público, menos cerceadas por mecanismos de identificação e condicionamentos de acesso, ganhavam ainda menor representatividade na historiografia da cidade, sem dúvida devido às múltiplas dificuldades desse tipo de investigação.

Ao final do curso, o tempo da reprodução social, da cultura e do lazer já despertavam muito o meu interesse por sua potencialidade transformadora e transcendente, principalmente no que tange às classes subalternas. Foi nessa altura que conheci o bar Liberdade e vi uma excelente oportunidade para dar início às investigações sobre a vida noturna de Pelotas e às reflexões que tanto me instigavam a respeito dos botequins.

4) Como lhe ocorreu construir um corpus documental a partir de um recorte de processos-crime a partir de horário e locais dos eventos que desencadearam os Inquéritos Policiais?

Bem, como ocorre com a maior parte das pesquisas, eu tinha um objeto em mente, que era, no mestrado, o lazer noturno popular da cidade de Pelotas na década de 1930. Como este é um objeto bastante fugidio – aliás, como costumam ser os objetos de pesquisa que giram em torno do tempo noturno e/ou da cultura popular –, tive de adotar estratégias que me permitissem uma aproximação mais efetiva daquilo que eu buscava. Tendo em vista que as fontes preservadas até os dias de hoje dificilmente trariam narrativas específicas sobre a sociabilidade popular, optei por “recortar” a noite – e, já na tese, também os bares – nas fontes disponíveis, espremendo o máximo possível desses registros.

A intenção de partir dos processos criminais surgiu dessa possibilidade de, ao lidar com uma fonte extremamente detalhada, delimitar precisamente a janela de tempo diária que eu gostaria de observar. Ademais, na época em que formulei meu projeto de mestrado – ano de 2010 –, eu estava bastante motivada pelo seminal Trabalho, Lar e Botequim, do Chalhoub, bem como pela experiência do Caiuá Cardoso Al-Alam com processos. Caiuá foi meu “veterano” na graduação da UFPel e, à época, era um dos exemplos mais vívidos de como valia a pena pesquisar Pelotas a partir de outros ângulos. O PPGH da UFPel estava então nos seus anos iniciais – ainda não possuía curso de doutorado, por exemplo – e eu queria contribuir com perspectivas a partir de outras fontes, além daquelas disponíveis nos acervos da cidade. Obviamente que isso só foi possível porque fui contemplada com uma bolsa CAPES, a qual cobriu quase todo o período do meu mestrado e permitiu viagens periódicas de Pelotas a Porto Alegre para concretizar a pesquisa no APERS, ao longo dos anos de 2011 e 2012.

Acompanhe na próxima semana a segunda parte da entrevista com a historiadora Thaís. Até breve!

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