Descobrindo o Acervo: O olhar triste de Maria
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Nos processos envolvendo escravizadas e escravizados, é muito raro que se encontre fotografias. Em um deles, do acervo do Judiciário do APERS, consta um retrato de Maria (1883), escravizada residente em Bagé, mas cuja foto foi feita em Pelotas. O fotógrafo era Augusto Amoretty, ou François Auguste Amoretty, proprietário do estúdio Nova Photographia. Augusto foi um dos fotógrafos mais importantes do Brasil no período e fotografou Maria, como de costume, em cartão, sem ornamentos e centralizada em área oval, com o busto enquadrado em expressão séria. Esse mesmo padrão foi utilizado nas fotografias que havia feito antes, de dom Pedro II e do Conde D'Eu, em 1865.
Qual a história por trás dessa imagem? Ou, por que uma escravizada mereceria essa distinção, acessível a pouquíssimas pessoas, num período em que a fotografia era artigo de luxo? A resposta, que nada tem de benevolente, encontra-se no Processo Judicial/Crime número 4146, da 1ª Vara Cível e Crime da Comarca de Bagé, de 1882. A vítima é identificada apenas como Maria, e a ré é Umbelina Bernarda de Assunção, a Viscondessa de Cerro Alegre.
Em 1º de dezembro de 1882, a pedido do promotor público da comarca, foram convocados peritos para proceder ao auto de corpo de delito em Maria, escravizada pela Viscondessa de Cerro Alegre, que “segundo consta, acha-se bastante seviciada”, em consequência de “castigos imoderados que sofrera no dia 29 de Novembro”. Feitas as buscas na cidade, foi informado que Maria havia seguido para a estância de Domingos Pinto de Souza Mascarenhas, no 3º Distrito de Bagé. Indo o oficial de justiça até a estância, lhe foi informado que a escravizada fora levada para a estância do Sr. José da Silva Tavares. Ali, um capataz informou que ela não estava na casa. O juiz em exercício, então, solicitou uma escolta de 10 homens para proceder a busca na estância de Silva Tavares. Nessa diligência, os oficiais receberam a informação de que Tavares tinha ido para Pelotas, e que a apresentaria, mas não para o juiz, e sim para o chefe de polícia.
Seguiram as buscas, com a acusação, agora, de que se estava propositadamente ocultando a cativa para fugir à lei. Indo um oficial à casa da Viscondessa, um filho (José) lhe disse que a mãe não poderia atendê-lo, pois encontrava-se enferma. Instado pela situação, José conversou a sós com a mãe e retornou com a informação de que Maria estava em Pelotas, na casa de Joaquim da Silva Tavares, outro dos filhos da Viscondessa.
Depois que a investigação, com várias inquirições, verificou que Maria estava, de fato, em Pelotas, foi emitida uma Carta Precatória solicitando que o corpo de delito fosse lá realizado. Os peritos de Pelotas declararam, então, que não encontraram nem ferimento nem ofensa física na “parda Maria”, e que ela estava nutrida e em ótimo estado de saúde. Além disso, no interrogatório feito para o mesmo documento, Maria declarou que foi “moderadamente” castigada, com algumas chicotadas, a mando de sua senhora. O motivo do castigo? Solicitada a trazer uma garrafa de vinho, Maria se enganou e trouxe uma garrafa de “espírito de vinho” (espécie de álcool obtido da destilação do vinho, possivelmente grappa). Maria ainda referiu que, após o fato, foi levada para a Estância do Limoeiro, de propriedade de sua senhora, e que ficou oito dias a curar-se de umas “pequenas feridas” que tinha, sendo, depois disso, levada para Pelotas. Anexada à Carta Precatória, foi enviada a fotografia em questão, como prova adicional do bom estado de saúde da escravizada. Com essa documentação despachada para Bagé, em 24 de fevereiro de 1883 o processo foi encerrado, sendo decidido pelo arquivamento, sem nenhuma punição à acusada.
O processo, aqui bastante resumido, contém inúmeros elementos de análise. Maria, ao que parece, depois da agressão sofrida por motivo torpe, se viu presa em uma trama que envolvia uma série de questões. Uma delas, é possível conjeturar, relacionada à instauração da própria acusação. Talvez ela fosse reflexo do movimento abolicionista já em curso. Ou, também provável, fossem divergências entre grupos políticos que faziam com que o promotor tivesse a coragem de acusar a Viscondessa de Cerro Alegre, viúva de João da Silva Tavares, primeiro e único Barão e Visconde de Cerro Alegre, e um dos “próceres” militares e políticos da Província desde a guerra da Cisplatina. Ela era mãe do Barão de Itaqui, o famoso Joca Tavares (João Nunes da Silva Tavares), e do Barão de Santa Tecla, Joaquim da Silva Tavares, ambos, então, em plena atividade. As divergências e afinidades talvez expliquem o fato de que um de seus filhos declarasse que só apresentaria a escravizada para o chefe de polícia, e não para o juiz. Pela necessidade de proteger a mãe, explicam-se as medidas protelatórias que eles tomaram, escondendo a escravizada e, presumivelmente, ganhando tempo para a sua recuperação. Além disso, podemos imaginar as circunstâncias de pressão em que foi tomado o depoimento de Maria em Pelotas (se é que de fato houve o depoimento), no qual é evidente a intenção de minimizar o ocorrido. E, entre tantas, uma última questão nos leva de volta à fotografia: uma demostração de poderio econômico e dos mecanismos que permitiam, na época, aos mais abastados lidarem com a Justiça. O fato, em resumo, é que a estratégia da família poderosa foi bem-sucedida.
Ao que tudo indica, Maria, depois disso, retornou para Bagé, pois, em 1884, a Viscondessa registrou uma Carta de Liberdade Condicional, à “parda solteira” Maria, (documento que também consta dos acervos do APERS) que supomos ser a mesma pessoa. Essa carta, junto com inúmeras similares, evidencia um movimento dos proprietários de precaver-se contra as ações e possíveis sucessos do movimento abolicionista. No caso de Maria, a condição de sua liberdade era servir sua senhora e/ou sua família pelo prazo de cinco anos. A Abolição, ainda que tardia, chegou antes do que previa o contrato de alforria de Maria, situação semelhante a de tantos outros escravizados naquele período.
O caso descrito demonstra as possibilidades de pesquisa histórica – felizmente já muito disseminadas – a partir de fontes de várias origens e seu cruzamento. Além do aspecto de produção de conhecimento, porém, essa documentação nos emociona pelas implicações humanas passíveis de serem inferidas. E essa também é uma das funções da pesquisa, ou seja, possibilitar que se “ouça” e se tente compreender as vozes daquelas pessoas comumente silenciadas, e que quando falavam, o faziam sob condições de absoluta submissão e de forte constrangimento.
Mas seu olhar nos fala mais livremente, e, sim, nele podemos observar uma tristeza profunda. Tristeza, mágoa, desencanto. Olhar de quem já viveu e sofreu muito. Desconfortável, provavelmente numa roupa que não é a sua, usando um turbante que talvez esconda ferimentos, cercada de pessoas que são as responsáveis por sua desventura. Mas a expressão revela, sobretudo, dignidade. Neste 20 de Novembro, há 140 anos, o olhar de Maria ainda nos interpela.