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Os acervos do APERS e o Golpe civil militar de 1964: você sabe o que é “Primadismo”?

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Matéria Site Primadismo
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Por Álvaro Antonio Klafke/ APERS

Na noite de 6 de janeiro de 1962, um sábado, por volta das 22h30min, um grupo de homens encapuzados e armados tentou invadir os estúdios da Rádio Farroupilha, situados no 22º andar do Edifício Galeria do Rosário, na rua Vigário José Inácio, centro de Porto Alegre. O objetivo do grupo era interromper a transmissão do “Repórter Esso”, programa noticioso de grande audiência, para, em um “propósito patriótico”, ler um manifesto com “mensagem anti comunista”, como declarou um dos acusados. A ação – uma grande trapalhada – foi frustrada pela intervenção de um guarda rodoviário que estava no local, no momento.

Este fato originou o processo-crime n. 4637, da 5ª Vara Criminal da Comarca de Porto Alegre (1965). O processo se estende de janeiro de 1962 até junho de 1965. Os acusados eram Waldomiro Ramos Pacheco; Luiz Augusto Fontela Santos; Armando Henrique Dias Cabral; Walter Cunha; Jorge Morais Branco; José Renir dos Santos; Darcy Elesbão e Osório Araújo Cavalheiro.

Processo salvaguardado pelo APERS
O processo: mais de 1.000 páginas.

O documento judicial, cerca de 1000 páginas em 4 volumes, é um dos mais interessantes de nossos acervos em relação ao contexto anterior ao Golpe de 1964. Oriundo de um fato específico, ele se desdobra em várias frentes que ultrapassam o momento do crime e iluminam aspectos diversos das disputas políticas e dos movimentos de direita que, mesclando ações legalizadas com atos clandestinos, ajudaram a pavimentar o terreno para a consolidação da ditadura civil-militar. 

Desde o início, uma figura é destacada pela acusação: Waldomiro Ramos Pacheco, tido como mentor do grupo, sob cuja liderança a ação teria sido planejada. O rito processual, de acusação e defesa, faz com que o processo vá ganhando desdobramentos, tanto pelo esforço da promotoria em demonstrar a periculosidade e o caráter nocivo do réu, quanto pelo esforço contrário, de Waldomiro mostrar-se um cidadão íntegro e, ademais, importante como agente social de formação e orientação da juventude.

O "Primadismo" e seus princípios
O "Primadismo" e seus princípios
Exemplar da revista "Renascimento"
A revista "Renascimento".

É por meio deste debate que tomamos conhecimento do “Primadismo”, uma espécie de doutrina filosófico-científica, política e social que pretendia o “aperfeiçoamento” da humanidade, mediante: a) “intervenção na codificação hereditária para normalizar os genes defectivos”; b) “modificação do meio natural”; c) “reforma econômico-social”. Materializava-se num movimento de direita (apesar de dizer-se contra o comunismo e o capitalismo) que era vinculado a outro, o “Instituto dos Direitos da Criança”, cujo órgão oficial era a revista “Renascimento”. Ambas instituições eram criações de Ramos Pacheco, segundo ele, lançados oficialmente em ato público no Teatro São Pedro, em 1953. Tudo isso, e muito mais, está amplamente documentado nos anexos do processo, que contam com alguns exemplares da revista “Renascimento”, manuscritos pessoais dos envolvidos, fotografias, cartilhas educativas, correspondências, recortes de jornais, etc. 

A maior parte dos anexos é oriunda de um extenso dossiê que Ramos Pacheco apresentou para sua defesa, talvez em resposta a um levantamento de fatos de seu passado que foram trazidos à baila no momento do processo, como evidências de seu histórico criminoso. Ele foi acusado de assassinato da esposa, por envenenamento, em 20 de fevereiro de 1929, na localidade de São Marcos, município de Caxias do Sul. O caso, trágico, se reveste de aspectos novelescos. A versão que corria na região serrana, inclusive a partir do depoimento de um delegado local, era que a esposa, então uma menina de 13 anos, foi raptada pelo acusado. Posteriormente ele se casou com ela, e dois anos depois, interessado que estava em outra moça, envenenou sua mulher. Ele se defendeu alegando que o ocorrido foi um suicídio, o que gerou, também, um longo processo no qual, ao que parece, de início foi tido como culpado e depois absolvido. Sua defesa alegava que acusação se dera pelo fato de que ele, um “brasileiro”, nunca fora aceito pelos “italianos” da Serra gaúcha. No APERS, temos dois processos de Habeas corpus em nome de Waldomiro Ramos Pacheco referentes ao caso, ambos da Comarca de Caxias do Sul: o Processo n. 1649 (1929) e o n. 1887 (1930). O primeiro é negado e o segundo, já em instância superior, em Porto Alegre, é concedido. 

As implicações do caso, e sua reverberação 30 anos depois dos fatos mostram a relação que pode ser feita entre documentos de distintas origens do acervo do APERS, ampliando os próprios questionamentos da pesquisa histórica, que se vai desdobrando em aberturas sucessivas. Um caso policial revela-se uma espécie de portal para adentrarmos em realidades que envolvem aspectos da história política, mesclados com história social em múltiplas facetas.

Pindulico no país dos Homens-Tartaruga
Ficção "educativa".

O destaque que damos a estes documentos, neste momento, assume relevância por, pelo menos, duas razões. A primeira, mais óbvia, é porque pretendemos marcar a relação dos fatos citados com a lembrança da instauração da ditadura de 1964. O “Primadismo”, a despeito de uma retórica humanista, defendia posições direitistas e até eugênicas. Assim era sua mescla de ação política com ação social “educadora”, estritamente vinculada à ideologia liberal, marcadamente anti esquerdista. Inclusive, havia suspeitas de ligação com outros grupos de direita no Brasil, e não passou despercebido à imprensa da época que a tentativa de invasão da rádio, em Porto Alegre, aconteceu na mesma noite em que a sede da UNE, no Rio de Janeiro, foi metralhada por um grupo de direita.  Waldomiro Ramos Pacheco sempre negou a sua própria participação no evento de Porto Alegre e também qualquer relação que isso pudesse ter com a organização da qual era líder. Mas todos os implicados, em maior ou menor grau, faziam parte do movimento.

Matéria Primadistas
Com tintas sensacionalistas, a imprensa repercutia o caso.

A outra razão, vinculada a esta, é que o contexto no qual se deram os fatos guarda alguma semelhança com eventos recentíssimos ocorridos no Brasil. Os atos de sabotagem e vandalismo, cometidos por grupos em nome de posições de extrema direita, contra uma suposta ameaça “comunista”, que a maioria não sabe sequer do que se trata, indicam um desrespeito perigosíssimo às regras democráticas, que na década de 1960 se mostrou desastroso. E mais, a cooptação de membros, alguns socialmente desajustados, com problemas psíquicos (evidenciados no processo), também se assemelha ao perfil de parte dos perpetradores dos atos de hoje. Mas a principal razão para tal engajamento talvez seja a simples ignorância do passado, notadamente do que significou a ditadura no Brasil. Tal ignorância é fruto de ações deliberadas de falseamento da realidade e da falta de punição dos responsáveis. E é nesse sentido que o estudo da História do período anterior ao golpe de 1964, no qual o processo em questão é uma fonte preciosa, assume importância fundamental. 

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