Todos contra o médico: o levante do povoado de Anta Gorda contra Miguel De Patta
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No dia 29 de março de 1923, um fato sem precedentes ocorreu no povoado de Anta Gorda, segundo distrito do município de Encantado: a população, representada por dezenas de revoltosos (não havendo precisão do número correto), promoveu um verdadeiro levante em prol da expulsão de Miguel De Patta e sua família do referido distrito; apelando para a violência explícita, os revoltosos alvejaram com armas de fogo contra o hospital onde trabalhava e vivia os alvos da revolta. Tal episódio estampou as capas de diversos jornais da época (estando dezenas deles anexados em meios às páginas do processo), o que permite notar a repercussão a nível nacional e mesmo internacional do fato.
Em uma primeira postagem, contaremos um pouco dessa história, buscando demonstrar o desenvolvimento dos antecedentes que culminaram no motim de março de 1929, bem como seus desdobramentos jurídicos e sociais. E num segundo momento, analisaremos a veiculação do fato nos jornais, buscando analisar os diferentes discursos e estratégias (incluindo o sensacionalismo) empregados pelos canais midiáticos da época.

Emigrado de sua terra natal Scalea, província italiana de Consenza, em 1919, após ter servido “com fidelidade e honra a sua querida pátria”, Miguel de Patta, juntamente a sua família, chega ao Brasil em 1920, realizando assim um “ideal cobiçado no seu coração desde a primeira infância”. Ainda que tenha desembarcado inicialmente em Porto Alegre, De Patta buscou sua sorte na zona agrícola do interior do Rio Grande do Sul, exercendo, primeiramente, a profissão médica em “Garibaldi, no campo de Lagoa Vermelha, em Nova Bassano”. Contudo, o médico italiano é chamado para uma visita no povoado de Anta Gorda em 1921, onde “sentia uma força arcana que o persuadia [...] a ficar ali”; nesse sentido, acatando aos “justos palpitos da alma”, Miguel De Patta e sua família se estabelecem definitivamente no referido povoado.
A história da família De Patta no povoado de Anta Gorda tem um começo feliz: assim que chegou ao povoado, Miguel De Patta fora “recebido como um Messias” pela população. Captando a confiança dos colonos e demais moradores do distrito, o médico era pauta central em Anta Gorda e nas demais vilas próximas, de modo que “tinha gente que fazia dois ou três dias de caminho a cavalo para consultar com o Dr. De Patta”. Contando com o apoio da população, bem como de pessoas de grande influência do povoado, De Patta mobilizou os esforços locais de modo que, a partir de uma “subscrição popular”, foram angariados os recursos necessários (10:000$000) para a construção de um Hospital, que para além de local de trabalho, seria também a residência do italiano e de sua família.
Todavia, esse cenário de aparente harmonia que marcou a chegada da família De Patta logo foi desestabilizado com a volta do padre Herminio Cattelli, que viajava pela Europa. A semente da discórdia fora efetivamente plantada no momento em que houve um incidente com Francisco Lopresti que, não conseguindo o testemunho do padre em seu favor num processo que estava envolvido, deu início a uma verdadeira “campanha desmoralizadora” [contra Herminio Cattelli], escrevendo artigos em jornais e panfletos que distribuía entre o povo”. Nesse sentido, a virada de chave para Miguel De Patta deveu-se à relação de amizade que nutria com Francisco que, ao invés de dissuadi-lo a deixar de praticar a campanha difamatória contra o padre, insuflava a mesma também falando mal do padre. Esse apoio de De Patta à Francisco culminou no início de uma relação de desconfiança que os colonos passaram a nutrir contra o médico, uma vez que estimavam significativamente o padre.
Mais tarde, reclamações contra cobranças exageradas dos serviços e medicamentos fornecidos por Miguel De Patta acentuaram ainda mais a desconfiança do povoado contra o médico. Significativo também é o testemunho de Luiz Tombini, morador de Anta Gorda, que aponta para a impossibilidade enviar “pessoa alguma do sexo feminino para o hospital”, uma vez que já havia exemplos como “a filha do sr. Pedro Loss que estava se tratando com ele [De Patta] e foi deflorada pelo mesmo”. A situação chegou ao limite quando, já próximo ao dia do motim, faleceu no Hospital São Carlos o filho pequeno de Sylvio Barbosa, sujeito de considerável prestígio social, e De Patta negou a entrada do padre Herminio no estabelecimento para a prestação de seus serviços religiosos; mais ainda, o médico conduziu o “cortejo fúnebre para o cemitério” sem a presença do padre e, valendo-se da palavra, disse que dali por diante só aconteceriam “coisas boas” ao padre e que o povo religioso era composto de “pesteados do padre”.
Coincidentemente, ou não, na noite do dia 21 de março o padre Herminio é atacado por quatro homens (cujas identidades não foram reconhecidas). Somado à desconfiança já bem nutrida do povo contra Miguel De Patta, o mando da agressão logo foi atribuído a esse. Nos dias seguintes, o povoado de Anta Gorda pressionou intensamente as autoridades para que desvendasse a identidade dos agressores. Todavia, impacientes com a demora por parte das autoridades, dezenas de indivíduos do povoado e dos arredores elevaram o tom das ameaças, obrigando a família De Patta a se retirar de Anta Gorda sob pena de represálias. A situação chegou ao estopim quando o delegado Geraldo Costa, sob pressão da população, afirmou não ser possível prender Miguel De Patta para retirá-lo da localidade, tendo em vista não ser o mesmo “sujeito à prisão por qualquer motivo”.


Ainda que parte do povoado de Anta Gorda fosse favorável a esperar as providência por parte do Governo do Estado no sentido de solucionar o caso, a vontade que prevaleceu foi a da ala mais revoltada da população que, na manhã do dia 29 de março, promovem um verdadeiro levante armado em prol da aniquilação da família De Patta. Durante mais ou menos cinco horas, sob a melodia de tiros e de uma “gritaria infernal”, o Hospital São Carlos foi palco de um tiroteio nunca antes visto na história de Anta Gorda. Apesar da intensidade dos ataques, a família De Patta inacreditavelmente sobreviveu, confirmando aquilo que foi falado pelo médico ao seu cônsul, por meio do envio de um telegrama, às vésperas da ação dos revoltosos: “resistirei até a última gota de sangue, pela causa sagrada da justiça e da liberdade”.
Do motim, saíram dois indivíduos mortos (José Conte e Bartolomeo Bertoldi) e pelo menos sete feridos (Luiz Fracaro, Bibiano Moura, Severo Poloni, Germiniano de Souza, Guilherme Goldoni e Joaquim Pasini), além de diversos denunciados evidentemente. Entre as sanções previstas no código penal de 1890 que foram atribuídas aos denunciados, destaca-se o crime de homicídio (Art. 294) o qual foi incurso o próprio Miguel De Patta, mas que, por outro lado fora inocentado com base na legítima defesa; o crime de ajuntamento ilícito (Art. 119), incêndio criminoso (Art. 136) e tentativa de homicídio (previsto pelo mesmo Art. 294), estando incurso nesses últimos três, os demais réus (Luiz Tombini, Luzi Fracaro, Bibiano Menna, Severo Poloni, Germiniano de Souza, Guilherme Goldoni, Joaquim Parini e Antonio Costa). Por fim, contrariando a versão de Miguel De Patta, bem como de diversos jornais que veicularam a história da “selvageria de Anta Gorda”, que afirmava ter sido o padre Herminio Cattelli o mandante do levante armado; a conclusão dos autos aponta para a inexistência de “cabeças insufladoras” por trás do movimento, tendo o povo “agido por vontade própria”.
Processo nº 582. Comarca de Encantado - Vara Cível e Crime - Crime - 1923.