Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão
Início do conteúdo

A enchente de 1959 nos documentos da Secretaria de Interior e Justiça.

Um ano após a enchente de 2024, documentos do fundo da SIJ, em tratamento no APERS, lançam luz sobre inundações de 1959.

Publicação:

.
.
Por Eduarda Centeno Dias, Gabriel Siviero Sibemberg e Jheinnefer Nazário da Silveira/APERS

   No final do mês de abril de 2024, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido por fortes chuvas, Esses dias finais de abril deram início a um desastre natural de proporções nunca antes vistas em território estadual.

O estado possui uma população de 10.880 milhões de habitantes que residem em 497 municípios, dos quais 90,9% (452) foram atingidos pelas enchentes, muitos deles completamente destruídos. A tragédia, além dos danos materiais incalculáveis (destruição de casas, comércio, plantações, estradas, aeroporto, infraestrutura em todas as áreas), causou, até o dia 25 de maio, a morte de 169 pessoas, e 61 seguem desaparecidas. Cerca de 2,1 milhões de pessoas foram afetadas, 650 mil foram desalojadas e 71.500 estão desabrigadas (acolhidas em abrigos públicos). Além disso, centenas delas não poderão mais voltar para suas casas por estas terem sido levadas pela enchente e por estarem em áreas de risco, sendo impossível reconstruí-las no mesmo lugar. Na área da saúde, mais de 3 mil estabelecimentos de saúde foram atingidos. (RIZZOTO, COSTA E LIBATO, 2024, p.1).

              As enchentes devastaram cidades e deixaram marcas profundas na população. Agora, completando um ano deste cataclisma, lembranças e memórias emergem na superfície, e não somente do ano de 2024. Mesmo durante o evento, em maio passado, foram muitas as comparações feitas à grande enchente de 1941, até então a maior da história do Rio Grande do Sul. Porém, 18 anos após a temerosa enchente de 1941, o estado se deparou com uma situação igualmente desastrosa. Em meados de abril de 1959, chuvas torrenciais aumentaram o nível do Rio Pardo que, naquele momento, já estava em condições de alagamento. Com o súbito aumento do nível da água, cidades e municípios inteiros foram devastados, desde a região norte do estado, até o extremo sul em Santa Vitória do Palmar. Os registros sobre esse período trágico da história do estado são poucos, mas, recentemente, documentos acerca do assunto foram desvelados, trazendo nova luz sobre o tema. A enchente de 1959 ficou tragicamente conhecida como o segundo desastre natural mais fatal na história do estado, contabilizando 94 mortes.

             O conjunto documental da Secretaria de Interior e Justiça (SIJ, 1947-1985) foi recolhido para o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)  em 1981. Desde setembro de 2024, uma equipe dedicada de três estagiários do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Eduarda Centeno, Gabriel Siviero e Jheinnefer Nazário, está realizando o tratamento técnico do material, avaliando  e organizando o fundo documental, sob supervisão do historiador do APERS, Gabriel Gaziero. Entre centenas de processos administrativos referentes ao ano de 1959, foram encontrados até o momento seis documentos que abordam as enchentes que afligiram o estado em 1959.

            O processo número 1365, que começou a tramitar em 01 de junho de 1959, contém a relação entre a Secretaria de Estado do Interior e Justiça e diversos órgãos que se comunicaram para relatar os danos provocados pelas enchentes que atingiram o município de Santa Vitória do Palmar. João Caruso, o Secretário do Interior e Justiça e também Presidente da Comissão Central de Auxílios aos Flagelados, se comunica com o engenheiro Daniel Ribeiro, Secretário de Transportes, para determinar as providências necessárias para atender aos “reclamos dos poderes constituídos, das entidades de classe e de sua população em geral daquele Município.”.

            Então o DAER (Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem) determinou a intensificação dos trabalhos de sua equipe que atende especificamente a estrada mencionada e o DEPRC (Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais) ofereceu um parecer sobre áreas atingidas: o Porto de Lagoa Mirim, o Balneário Hermenegildo e sobre o Canal da Lagoa Mirim Atlântico (do qual não tinham confirmação para o projeto um canal dessa natureza). O Secretário Daniel Ribeiro devolve um dossiê, feito no dia 20 de maio de 1959. O levantamento efetuado para verificar os danos causados pela última enchente mostrou que o município se encontrava isolado das demais comunas rio-grandenses, por falta de meios de comunicação rodoviária, lacustre, aérea ou telegráfica. A Vila Jacinto, situada nos subúrbios da cidade, foi descrita como “habitada pelos marginais, que vivem na mais extrema pobreza e promiscuidade”, a Legião Brasileira de Assistência e o Executivo Municipal apelaram para mudar a vila para um local mais apropriado.

.
Trecho do dossiê “Danos provocados pelas enchentes, e vendaval sobre a estação balneária Hermenegildo” em 1959.

     Na estação balneária Hermenegildo, a área residencial foi atingida e 9 casas ficaram completamente destruídas, 11 foram danificadas e 34 avariadas. 102 flagelados, incluindo crianças da Vila Jacinto, também chamada no documento como “Povinho das Ratas”. O prefeito da cidade, Francisco Osvaldo Anselmi, que escreve a João Caruso, atenta para o problema de repercussão social das pessoas pobres que vivem sem nenhuma assistência. A situação agropastoril teve um grande número de perdas de animais (160 mil ovelhas e 10 mil bovinos), houve o interrompimento do fornecimento e escoamento da produção para os centros consumidores de Pelotas e Rio Grande e perda de hectares invadido pelas águas, entre 150.000 a 200.000. O Departamento Aeroviário da Secretaria de Estado dos Negócios dos Transportes estimou o prejuízo em 2.500.000,00 cruzeiros em 09 de junho de 1959. O aeroporto local se encontrava interditado, devido à umidade da pista, só uma pavimentação sólida permitirá tráfego aéreo normal.

        No Processo nº 13230/59, de 12 de novembro de 1959, a Comissão Estadual do Rio Grande do Sul da Legião Brasileira da Assistência (LBA), elabora um relatório de atividades do auxílio prestado, em colaboração com o estado do Rio Grande do Sul. No período, a presidente da associação era Neusa Goulart Brizola, esposa de Leonel de Moura Brizola, então governador do estado.

.
Ofício de Neusa Goulart Brizola, presidente da Legião Brasileira de Assistência, encaminhando relatório de atividades.

De acordo com o documento, a enchente atingiu as zonas de fronteira oeste, sul e Alto Taquarí. As cidades listadas são Cacequí, São Francisco de Assis, Uruguaiana, Jaguari, Itaquí, Bagé, Quaraí, Alegrete, São Gabriel, Rosário do Sul, São Borja, Dom Pedrito, Camaquã, Jaguarão, Santa Vitória do Palmar, Pelotas, Arroio Grande, São Sepé, São Lourenço do Sul, Pedro Osório, Erechim, Cruz Alta, Rio Grande, Taim, Piratini, Lavras do Sul, Caçapava do Sul, São Sebastião do Caí, Montenegro, Estrela, Lageado, Campo Bom, Não Me Toque e Canoas, assim como a República Oriental do Uruguai. No município de Pedro Osório, especialmente as cidades de Cerrito e Olimpo, a água subiu 25 metros, inundando 80% de suas áreas e deixando cerca de 8 mil flagelados.

.
Mapa demarcando as cidades gaúchas mencionadas no documento.

A LBA contou com o apoio de outras instituições, entre elas a Cruz Vermelha Brasileira, União dos Escoteiros do Brasil (Região do Rio Grande do Sul), Bandeirantes, Pepsi-Cola, estabelecimentos bancários e principais firmas do comércio e da indústria.

A relação de doações é apresentada para todas as cidades citadas, exemplificada pelos casos de Pedro Osório e São Lourenço do Sul, que possui fotos anexadas do recolhimento e da distribuição de materiais, além da cidade durante e após a enchente.

1. Pedro Osório

Agasalhos - 498 sacos

Alimentos - 80 sacos

Calçados - 31 sacos

Medicamentos - 31 caixas

Leite em pó - 2 tambores

Cobertores - 1.220 unidades

Acolchoados - 50 unidades

Colchões -1.887 unidades

Travesseiros - 18 unidades

2. São Lourenço do Sul

Agasalhos - 126 sacos

Alimentos - 41 sacos

Calçados - 5 sacos

Medicamentos - 16 caixas

Leite em pó - 2 tambores

Cobertores - 13 unidades

Colchões 12 unidades

.
Fila para recebimento de auxílio em meio à enchente em São Lourenço, 1959


.
Organização de donativos,1959.

       Dentre os documentos encontrados também estavam prestações de contas e pagamentos referentes a diversas das cidades atingidas. No processo número 1911 da Secretaria do Trabalho e Habitação, em comunicação com a Secretaria do Interior e Justiça, no dia 12 de novembro de 1959 o então deputado Pedro Tasis Gonzalez ficou sabendo da situação de Sant’Ana do Livramento. Dessa forma,requisitou ao Secretário do Trabalho e Habitação, Clay de Araújo, algum tipo de auxílio por parte do Estado. No fim, foram enviados 200 mil cruzeiros como ajuda aos flagelados pela SIJ. A situação das pessoas daquela região era descrita como angustiante, tendo perdido seus  pertences e desabrigadas esperando por ajuda. Infelizmente não é possível saber exatamente para quais instituições foi destinado tal verba, mas, graças ao recorte de uma reportagem do Diário do Sul, jornal da época cujo recorte está anexado ao processo, podemos ter uma melhor noção deste episódio.

.
“Onde nos conduzirá a inclemência dos temporais?” Recorte do jornal Diário do Sul, de Sant’Ana do Livramento na data de 15.4.59

   A manchete aborda os danos e  a situação dos atingidos pelas fortes chuvas. Porém a parte que chama mais a atenção fica na parte inferior da página, onde está escrito “Bilhete á Camilo Gisler”. Nesta mensagem, Antônio Britto clama por apoio de seu conterrâneo, Camilo Gisler, que na época era deputado estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). No bilhete, ele menciona a condição precária já existente em alguns prédios da cidade, que nesse caso são locais onde se encontram os grupos escolares “Professor Chaves” e “Olavo Bilac”. A condição é descrita como terrível, com goteiras que “transformam as aulas em lagos”. Além desta condição pré-existente, houve a ocorrência dos grandes temporais que atingiram a região. Então, o considerado “Anjo da Guarda de Santana” atendeu ao pedido. No dia 15 de Abril de 1959, enviou uma carta ao deputado Pedro Tasis Gonzalez, explicando a situação da região. Também é mencionado o fato de que Quaraí, por exemplo, recebeu 500.000 cruzeiros, e Alegre também recebeu um valor semelhante. Então, o deputado requisitava algo entre 100.000 e 200.000 cruzeiros. Vendo o desesperador contexto, Pedro Tasis envia um pedido ao Professor Clay de Araújo, Secretário do Trabalho e Habitação. Por fim, para concluir essa série de pedidos, é informado que o Secretário do Interior e Justiça enviou 200.000 cruzeiros pelo Banrisul, para a assistência dos flagelados.

Em outro documento, consta uma lista de servidores que eram vinculados à própria SIJ, e que ficaram desamparados durante as enchentes, junto da quantidade de auxílio que receberam. Nessa mesma linha, o processo número 13229, também de 12 de novembro de 1959 evidencia um pouco mais esse aspecto. O documento requerido pela Legião Brasileira de Assistência, contém a prestação de contas de 5.500.000,00 cruzeiros. Esta verba foi destinada aos flagelados pelas enchentes no Estado, e na apresentação do documento destaca-se a importante decisão por parte do governo de atuar junto à LBA, pois desta maneira foi possível levar “imediato socorro às populações flageladas”.

            Esse grande valor monetário constituía-se pela soma de 2.500.000 e 3.000.000 cruzeiros, destinados, respectivamente, pela SIJ e pela LBA, que era uma  Comissão Estadual do Rio Grande do Sul responsável pela assistência aos atingidos. Os valores foram empregados principalmente para o pagamento de diversas empresas, sendo elas  em sua maioria empresas de tecido, como por exemplo Leão & Cia, que recebeu 1.421.005 cruzeiros em um momento. Além de outras empresas, temos também fretes, passagens, despesas de viagem e auxílios para os moradores afetados. A quantidade de itens era diversificada. Em uma das notas de empenho, consta o envio de um total de 4.000 cobertores, pesando um total de 1.760 quilos. Em alguns dos comprovantes temos o recibo de valores enviados diretamente para as pessoas, e não de empresas, confirmando o recebimento de diferentes quantidades, como 500 cruzeiros, 200 cruzeiros, e até 2600 cruzeiros.

 

            Este artigo demonstra a potencialidade da documentação ainda não explorada da Secretaria de Interior e Justiça. O tratamento técnico está longe de terminar, ainda restam milhares de documentos a serem tratados. Porém, com a continuidade desse ofício, um número cada vez maior de documentos estarão classificados e acondicionados  adequadamente. Por consequência, mais materiais estarão disponíveis para o cidadão e para o pesquisador, possibilitando novos estudos.

            Após um ano da enchente de maio de 2024, percebe-se que ainda resta muito a se fazer. Pessoas continuam sem moradia, estabelecimentos comerciais fecharam ou ainda não se recuperaram e as cidades atingidas ainda apresentam as marcas da água que trouxe devastação e o abandono. Esse processo de recuperação é lento e árduo, mas com constância o estado pode se reerguer e se preparar para futuros desastres climáticos que certamente virão, como vieram em 1959 e em 2024.

 

Referências:                                                                                                                               

RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon; COSTA, Ana Maria; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos da Costa. Crise climática e os novos desafios para os sistemas de saúde: o caso das enchentes no Rio Grande do Sul/Brasil. Saúde em Debate, v. 48, p. e141ED, 2024.

 

 

 

Comentários

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul