A voz dos alforriados: o testamento de Anna Joaquina da Silva
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Os estudos clássicos sobre a escravidão e as relações étnico-raciais no Brasil não raro caem em uma armadilha: escutar as vozes somente dos senhores de escravizados e autoridades estatais. Como aponta Paulo Roberto Staudt Moreira: "Durante muitos anos, a historiografia regional sulina manteve distância do resgate da presença de escravos e negros em nosso estado, preferindo esquecer nossas raízes africanas e enaltecer nossa herança européia." (MOREIRA, 2003, p. 27)
Isso ocorre não somente por uma tendência pela manutenção da ordem vigente, que significa também manter uma história ligada a essas vozes hegemônicas, mas também por uma dificuldade de fontes que não tenham sido produzidas apenas por esses sujeitos. Ofícios, jornais, peças artísticas, testamentos, cartas, processos-crime e outros variados registros do passado foram em sua maioria feitos e conservados pelas pessoas no poder.
Contudo, novos esforços de interpretação dessas mesmas fontes, o papel do Movimento Negro nas reivindicações sobre nosso passado e a (re)descoberta de outros documentos deram voz a pessoas historicamente silenciadas, mostrando uma história muito mais diversa. Na última semana do mês da Consciência Negra, te convidamos a “escutar” a voz de Anna Joaquina da Silva por meio de seu testamento, mulher que nasce escravizada e que conquista sua liberdade. Além disso, te convocamos a pensar “qual história conhecemos sobre a escravidão no Rio Grande do Sul?” e “qual foi a participação negra para a construção da sociedade gaúcha?”.
O testamento de Anna Joaquina é bastante curto, porém rico em informações. O documento inicia explicando as motivações da testadora para escrevê-lo: sua fé católica e o temor da morte por ser “golpe infalível a todos os mortais”. Na sequência, afirma ter nascido em cativeiro, filha da escravizada Izabel Maria, já falecida, em Triunfo, sem afirmar com precisão a data. Seu senhor era Bernardo Joaquim da Silva, cujo falecimento significou a liberdade de Anna, provavelmente uma alforria concedida no testamento dele. Após essa apresentação de sua vida, ela passa a descrever aquilo que provavelmente foi o maior motivo para produção desse documento: a existência de seu filho Victorino, que era mantido escravo por Maria do Carmo de Oliveira Côrrea em Porto Alegre.
Anna Joaquina instruiu que tudo em posse dela, uma casa na Rua da Praia da Vila de Triunfo e os móveis ali presentes, deveriam ser arrematados pelo Juízo de Órfãos, Vara da Família da época, para que o dinheiro fosse convertido na alforria de seu filho. Apenas um móvel não deveria ir para este fim: um oratório de madeira com uma imagem de Nossa Senhora da Conceição que deixava para a Igreja e a Irmandade de Nossa Senhora das Dores. Ela termina o texto nomeando três testamenteiros e afirmando que seu testamento foi ditado por ela, mas redigido pelo Capitão Manoel José de Santa Izabel, pois a liberta não sabia ler nem escrever. Pede, também, que após sua morte, reze-se uma missa pela alma dela, de sua mãe e das almas no purgatório.
Esse testamento foi escrito em 1874, catorze anos antes da abolição da escravidão, e mostra a complexidade da sociedade escravista do século XIX: a fé católica imposta aos cativos, mas ao mesmo tempo apropriada por Anna mesmo depois de sua liberdade; a dor de uma mãe ao ver seu filho mantido escravizado, mas a busca pelos meios legais para alforriá-lo em vez das maneiras “clássicas” de se pensar a resistência negra (como as fugas e a formação de quilombos); a ajuda de agentes do estado para garantia de seus direitos, como do capitão que redige o testamento, ao mesmo tempo que a justiça da época mantinha diversos entraves legais para os ex-escravizados; a possibilidade (limitada) de ascensão social da testadora e paradoxalmente a perpetuação da desigualdade social.
Portanto, a escravidão “se tratava de um empreendimento pluridimensional que forjava uma nação a golpes de exclusão desumanizadora, articulava saberes, micro e macro redes de poder, uma moralidade, uma teologia — ou, pelo menos, uma cosmogonia—, uma arquitetura simbólica, uma pletora de desejos e identidades, e uma economia.” (GELEDÉS, 2023). Enfim, a visão comum sobre a escravidão, resumida pela dicotomia entre a Casa Grande e Senzala, pelas fugas e as chibatadas, não consegue perceber a agência dos escravizados, as complexas estratégias tanto de senhores de escravos para manter o poder sob os cativos e dos escravizados para sua sobrevivência.
Tampouco podemos continuar a perpetuar uma visão sobre a escravidão que ignora a presença dela no Rio Grande do Sul do século XIX, e não só nas grandes estâncias: dados estátisticos produzidos em 1860 apontam que na cidade de Porto Alegre, por exemplo, 30,85% da população era constituída de escravizados e de pessoas alforriadas na época (MOREIRA, 2003, p. 29). Esses números mostram como a escravidão foi aspecto fundante no nosso estado. Entretanto, além disso, a luta pela abolição e a superação das desigualdades fez parte do cotidiano oitocentista gaúcho. Somos complexos e diversos.
A necessidade da reflexão racial e social não termina em novembro. O Arquivo Público do Estado do RS (APERS) possui um acervo importantíssimo para recuperação da história e da voz dos escravizados e libertos.
O catálogo seletivo “Escravidão, Liberdade e Tutela” lançado em 2017 segue uma ferramenta importante para isso.
Documento de número 74 - Comarca de Porto Alegre - Provedoria - Testamento - Ano de 1874
Bibliografia:
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Editora EST, Porto Alegre, 2023.
PORTAL GELEDÉS. A tese de Sueli Carneiro, 2023. Disponível em <https://www.geledes.org.br/a-tese-de-sueli-carneiro>