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Entrevista com Claudia Daiane Garcia Molet - Parte I

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Claudia Daiane Garcia Molet é graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande (2008), especialista em Educação Profissional com Habilitação para a Docência no IF-Sul (2017), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (2011) e Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018). É servidora pública na Universidade Federal de Pelotas. Tem experiência em pesquisa com fontes documentais e com história oral. Foi ganhadora do Prêmio CAPES de Tese na área de História no ano de 2019. Sua dissertação pode ser acessada aqui, e a tese, aqui.

Claudia Daiane, em sua dissertação você trabalhou com fontes documentais do século XIX, ao passo que no seu doutorado você chegou à história do tempo presente e realizou entrevistas com quilombolas do Limoeiro, Teixeiras e Capororocas. Quais continuidades você vê entre os dois trabalhos?

Na dissertação de mestrado, o problema de pesquisa foi investigar como se dava o cotidiano entre o trabalho e a correção das mulheres negras na cidade do Rio Grande, ao final do século XIX. Nesse período, houve a tentativa de disciplinamento da mão de obra escravizada na transição para o mercado de trabalho livre que estava por se formar com a Abolição. A cadeia foi o local institucional para essa correção. As mulheres negras, escravizadas e forras, foram o principal alvo desse disciplinamento, pois em uma sociedade que preconizava que o ideal de mulher era em casa cuidando dos filhos, as mulheres negras necessitavam sair para as ruas, para garantir a própria sobrevivência e de sua família. Nas ruas essas mulheres circulavam pela área portuária, pelo mercado, pelas praças e à noite pelos bares, mantendo redes de solidariedade com outros trabalhadores e trabalhadoras da cidade. Mulheres que foram perseguidas pela cor negra, pelo gênero, pela condição social e, no caso das escravizadas, pela condição jurídica. A partir dos registros de prisões das mulheres negras (escravizadas e livres), no período compreendido entre os anos de 1864 e 1875 investiguei o perfil das encarceradas apontando dados como cor, profissão, naturalidade, idade, filiação, além de averiguar os dados referentes à prisão, como os motivos do encarceramento e o tempo de reclusão. Os dados apontaram que entre as escravizadas o principal motivo de encarceramento foi “a requisição do senhor”, sem que houvesse a necessidade de maiores justificativas e, entre as livres, embriaguez e desordem. A análise das cores das encarceradas apontou que entre os registros das mulheres livres quase 90% eram pretas e pardas. O que demonstra que a cadeia da cidade do Rio Grande foi um aparato institucional para correção de mulheres negras. Cabe pontuar que a quantidade significativa de registros de prisões e de reincidências apontam que aquelas mulheres resistiram aos desmandos do aparato disciplinador e corretivo.

Destaco que quando ingressei no mestrado eu já havia participado da pesquisa que visou a elaboração do Relatório sócio-histórico e antropológico da comunidade remanescente quilombola do Limoeiro, localizada no município de Palmares do Sul, no litoral do Rio Grande do Sul. E essa experiência foi um divisor de águas. Até então eu havia pesquisado documentos do século XIX. No Limoeiro tive outras experiências, pois para compreender as vivências dos quilombolas eu precisava escutá-los e fazer uma atividade de pesquisa do presente ao passado, uma nova experiência que marcou profundamente minha vida acadêmica, pois a temática quilombola foi o tema de pesquisa no doutorado, mas também minha vida pessoal ao possibilitar uma reconexão com a história de meus antepassados, visto que muitas das memórias dos quilombolas eu havia escutado na minha família, à beira do fogão a lenha e à luz de velas: os bailes separados, as figueiras com tesouros enterrados, as narrativas de dificuldade de acesso à educação, entre tantos outras.

Dito isso e respondendo o questionamento, sim eu percebo algumas continuidades entre a dissertação e a tese, pois embora meu olhar tenha focado para o outro lado da laguna dos Patos, mais especificadamente para o Litoral Negro do Rio Grande do Sul, uma estreita faixa de terras, por onde passou o Caminho das Tropas, que ligou Colônia do Sacramento, no Uruguai, a Laguna, em Santa Catarina, eu continuei pesquisando as práticas de resistências da comunidade negra. O território pesquisado na tese abriga atualmente oito comunidades remanescentes quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, que estão em diferentes momentos da titulação das terras e que têm um histórico de luta pela manutenção das terras legadas e das práticas culturais. Mais uma vez acionei as redes de solidariedade para compreender os laços de parentescos e amizades, muitos desses tecidos ainda dentro das senzalas, mas que se expandiram para outros companheiros e companheiras da vizinhança e que se atualizam na contemporaneidade.

Além disso, o recorte de gênero utilizado na minha dissertação possibilitou compreender as vivências das mulheres negras e quilombolas do litoral do Rio Grande do Sul. Ao investigar sobre a luta pela terra, ao longo dos séculos, ou a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, fundada no século XVIII, o protagonismo era dos homens negros. Porém, as mulheres negras ao estarem em casa cuidando dos filhos, elaborando as refeições, cuidando da lavoura, ou ainda partejando e cuidando do corpo e da lavoura a partir das benzeduras, possibilitaram que os homens pudessem sair para trabalhar e lutar pela terra legada ainda no século XIX. Na Irmandade Nossa Senhora do Rosário, que hoje mantém o Ensaio de Pagamento de Promessa, as mulheres constituem a memória do grupo, pois acompanham pais, filhos, avós, tios em cada ritual, além de serem elas quem avaliam se as cantigas e as danças estão sendo ensaiadas com a qualidade que a santa merece. As mulheres são responsáveis pela organização do salão, por preparar e servir a alimentação e, desse modo, possibilitam que os irmãos possam cantar e dançar do pôr do sol ao raiar do dia, em agradecimento a um pedido alcançado. Durante o Ensaio elas são capelonas, rezando o terço a meia noite e Rainhas Gingas acompanhando o Rei do Congo.

Você pesquisou fontes do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul em ambas as pesquisas. Qual foi a importância desses documentos nos seus estudos?

Historiadora Claudia Daiane em premiação da CAPES
Historiadora Claudia Daiane em premiação da CAPES
Na dissertação, conforme mencionei anteriormente, eu pesquisei registros de prisões que possibilitaram que eu utilizasse uma metodologia quantitativa, porém os dados tinham algumas limitações, pois não constavam informações mais detalhadas do cotidiano daquelas mulheres negras encarceradas na insalubre cadeia do Rio Grande. Nesse contexto, foi necessário buscar outras fontes e daí vem a importância do APERS e do Arquivo da Prefeitura do Rio Grande que permitiram a construção do espaço em que estiveram inseridas aquelas mulheres. No caso da importância dos documentos do APERS exemplifico com o processo que traz a história da ré Angélica Maria Aurora que tinha 19 anos de idade quando foi presa ano de 1868, à noite, por estar embriagada brigando com sua amiga Maria Joaquina, que veio a falecer em decorrência de uma queda. Cabe destacar que os dados de prisões desvendaram que entre as mulheres livres as causas de desordem e de embriaguez foram as mais recorrentes, totalizando 56% das prisões. A história de Angélica traz à tona o cotidiano dessas mulheres, que numa noite após rezarem o terço na Igreja da Matriz resolveram passear pelas ruas do Rio Grande e adentraram em alguns estabelecimentos comerciais para beberem e por lá encontram outras companheiras. Porém, após um desentendimento e algumas trocas de ofensas morais e físicas, de acordo com as testemunhas, Angélica teria empurrado Maria Joaquina, que na queda quebrou uma perna e veio a falecer. O processo, a partir das várias testemunhas arroladas revelou uma rede de mulheres negras, trabalhadoras, que para além das atividades que executavam mantinham contatos com inspetores de quarteirões, policiais, médicos, trabalhadores da área portuária. Além disso, desvenda como dava-se esse cotidiano noturno que possibilitava experiências de embriaguez e desordens.

Na tese, as fontes do APERS possibilitaram que eu pudesse defender a existência de um Litoral Negro originado ainda na primeira metade do século XIX. Litoral marcado pela existência de núcleos de escravizados e de escravizadas que conquistaram terras, liberdade e outros bens cuja doação foi oficializada em testamentos de seus antigos proprietários. Além disso, os registros paroquiais de terras, obrigatórios a partir da Lei de Terras de 1850, demostram as primeiras investidas dos libertos na luta pela terra herdada. A comunidade de Casca, localizada em Mostardas, tem sua origem territorial atrelada ao testamento de Quitéria Pereira do Nascimento, uma das proprietárias da Fazenda dos Barros. Quitéria deixou registrado um pedaço de campo aos seus escravizados e escravizadas em seu testamento, no ano de 1826. Na década de 1850, encontrei no Livro de Registros Paroquiais de Terras, de São José do Norte (Mostardas emancipou-se de São José do Norte, na década de 1960) um registro dos legatários de Quitéria que se auto nominaram de: “nós escravos que fomos da falecida dona Quitéria de Souza”. Esses libertos sabiam da existência da Lei de Terras, da obrigatoriedade de registrar o quinhão herdado, possuíam dinheiro para tal inciativa e ainda fizeram uma denúncia ao registrar um quinhão de terras que haviam herdado, mas que não sabiam das medidas exatas visto que ainda não tinham recebido o legado. Desse modo, os documentos do APERS, entre eles testamentos, inventários, registros paroquiais e os catálogos de alforrias foram fundamentais no desenvolvimento da minha tese e, consequentemente na luta pela causa quilombola.

Vamos compartilhar na próxima semana a continuação da entrevista com a historiadora. Acompanhe!

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