Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão
Início do conteúdo

Entrevista com Claudia Lee Williams Fonseca - Parte III

Publicação:

APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana anterior, Claudia Fonseca nos falou sobre a influência da historiografia do cotidiano e a relação entre o trabalho de campo e a pesquisa em arquivo. Confira o trecho final de sua entrevista!

Alguns antropólogos e antropólogas, como Celso Castro, Olívia Cunha e Adriana Vianna, dentre outros, traçam um paralelo entre a análise de arquivos e documentos e o trabalho de campo antropológico. Quais as vantagens e cuidados ao estabelecer essa comparação?
Sim, se não me engano, Cunha (2004), inspirada no trabalho de Sergio Carrara sobre sífilis, fala até das “aldeias” de arquivos para chamar atenção aos agrupamentos, classificações e aproximações entre eles. De fato, o Programa de Antropologia Social do Museu Nacional concentra um núcleo prolífico de profissionais que tiveram formação básica na história: Giralda Seyferth, Antonio Carlos Souza e Lima, e – na nova geração, consolidando a tradição interdisciplinar -- as próprias Olívia da Cunha e Adriana Vianna. Foi riquíssima a “transpolinização” dessas disciplinas nas décadas de 80 e 90, de forma que mesmo estudantes que não vieram da história (Sergio Carrara, João Pacheco, e outros) acabaram produzindo belos estudos históricos sobre temas de grande interesse à antropologia.
Agora, me dou plenamente conta que, por não ser treinados profissionalmente para isso, antropólogos (como eu) arriscam cometer erros grosseiros quando se metem na história através de pesquisas nos arquivos. Mas, só posso dizer que aprendi muito contemplando o cuidado com o qual os historiadores restituem o “contexto” dos seus objetos empíricos, como em geral enriquecem suas análises com uma visão comparativa (no mínimo, entre o presente e o passado), e como levam um olhar cético e escrutinador para suas fontes.
Apesar de existirem muitas pesquisas etnográficas sobre processos jurídicos da atualidade, raramente se encontra uma análise sistemática de quem são os juízes e escrivães que desempenham um papel central – os círculos sociais e políticos nos quais se integram, o tipo de formação que receberam, seus salários, sua permanência na função, o tempo que cada processo corria até de receber a sentença final. Cardozo (2016) sabe fazer falar muitos detalhes como esses. Mais recentemente, tive o privilégio de estar na banca de doutorado de Patricia Geremias (2019) sobre o trabalho infantil no início do século XX carioca. Não só nos fala das leis e políticas das instituições que colocavam seus tutelados no emprego, mas passa sua lente sobre os termos de responsabilidade que acompanhavam a colocação. Dessa maneira, pode checar a quantia de dinheiro depositado nas contas dos pequenos trabalhadores conforme valores de uma sociedade crescentemente monitorizada e com mentalidade contratual. São detalhes como esses que abrem a imaginação para além de visões maniqueístas para pensar o que ocorria de fato naquela época, de quais cuidados especiais a criança merecia – em suma, onde e como as pessoas traçavam as fronteiras do universo moral entre o certo e errado. 

Ann Laura Stoler fala em “archival turn”. Existe algum tipo de diálogo com a Arquivística, envolvendo aquela reorientação de interesses?
A resposta que me vem de imediato é que a Antropologia tem tirado proveito desse olhar “arquivística”, acrescentando mais algumas “viradas”. Fora as pesquisas de veia mais histórica, dá para ver essa influência nos atuais estudos sobre as infraestruturas burocráticas de governo (Hull 2012, Fonseca 2021). Uma antropóloga pioneira norte-americana muito citada nessa área, Annelise Riles (2008), tem fornecido inspiração à geração mais recente de pesquisadoras. Leticia Ferreira e Laura Lowenkron (2020), por exemplo, orientandas de Adriana Vianna, têm vasculhado a papelada de processos contemporâneos – indo de laudos sobre necropsias até boletins policiais de ocorrência sobre pessoas desaparecidas e o tráfico de mulheres. Talvez não seja exatamente na veia de Stoler, mas tem algo em comum – o fato de saborear a materialidade dos documentos, de atentar às várias etapas de sua confecção, de procurar nos arquivos algo mais do que uma fonte inerte de informações.

Lévi-Strauss afirmou que a História e a Etnologia são como Jano, um deus de dois rostos. Em seus livros, o diálogo com historiadores é marcante. Como você avalia, nos dias de hoje, a colaboração – e as tensões – entre História e Antropologia?
Para esse assunto, encontro inspiração principalmente na visão de Evans-Pritchard (1962). Este autor britânico escreveu dois textos seminais nos anos 1950 e 1960 problematizando a relação entre a antropologia -- com sua ênfase no trabalho etnográfico de campo -- e a história. Pritchard estava tentando arrancar a Antropologia das garras das ciências físicas, com a fixação em leis universais da natureza, e aproximá-la das humanidades visando a interpretação (antes do que a explicação) de sistemas morais particulares. Ele insistia que a história e a antropologia no fundo tinham métodos muito semelhantes (que ele chamava então a “integração descritiva”) e que as duas disciplinas tinham muito de ganhar numa aproximação. Vale a pena ler; eu não saberia nada que vai além.

.
Claudia Fonseca


Referências citadas:

CARDOZO, José Carlos da Silva. 2016. “As crianças no Juízo dos Órfãos de Porto Alegre”. In História das crianças no Brasil Meridional (José Carlos da Silva Cardozo et al. Orgs.). São Leopoldo: Oikos. p. 194-233.

CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 2004. “Tempo imperfeito: Uma etnografia do arquivo”. Mana 10(2):287-322.

EVANS-PRITCHARD, E.E. 1962. Social anthropology and other essays. MacMillan paperback

FERREIRA, Leticia e Laura Lowenkron (eds). 2020. Etnografia de Documentos: Pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. RJ: Editora E-papers.

FONSECA, Claudia. 2021. “Cultivando proliferações indomáveis: considerações antropológicas sobre as políticas de proteção à infância”. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 60, p. 419-451, maio/ago.

GEREMIAS, Patricia Ramos. 2019. “Como se fosse da família”: arranjos formais e informais de criação e trabalho de menores pobres na cidade do Rio de Janeiro (1860-1910). PPG de Historia Social, UFRJ, Rio de Janeiro.

HULL, Matthew. 2012. “Documents and bureaucracy”. Annual Review of Anthropology 41: 251-267.

SLENES, Robert. 1999. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX. RJ: Editora Nova Fronteira, p. 106-115.

Comentários

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul