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Entrevista com Liane Susan Muller - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na quarta-feira anterior (01/12), lemos a primeira parte da entrevista com a historiadora Liane Susan Muller, na qual ela nos falou sobre sua pesquisa a respeito da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, e também sobre o papel das fontes judiciais salvaguardadas no Arquivo Público para esse trabalho. Vamos ler a continuação de suas reflexões!

4. Em sua dissertação, você discutiu a aplicabilidade do conceito de “elite” à Irmandade do Rosário, usando-o sempre entre aspas. Como você vê, hoje, essa questão?

Puxa, eu acho que ainda vejo do mesmo jeito. Ainda é um vácuo conceitual pra mim. Se fosse hoje, não sei que denominação daria a essas pessoas. Era um grupo privilegiado, por certo. Através de suas ações puderam seguir seu protagonismo no Centro ou próximo, da cidade. A maioria, sabemos, foi defenestrada para as periferias. É complicado lidar com um grupo que constrói um lugar de prestígio entre os seus, mas que obviamente não rompe a bolha, para usar uma expressão moderna. Nunca foram elite frente aos brancos. Mesmo que financeiramente alguns pudessem se equipar. Ou se aproximar. Mas o universo simbólico, para além do seu próprio, nunca lhes pertenceu. Mesmo hoje, a maioria branca ainda está presa a uma mentalidade colonial, escravagista, racialista, onde não há espaço para o outro. Ou, pior, onde o outro segue atirado a um degrau abaixo no seu conceito de civilização. Não faz parte. Não deve fazer parte. E é alçado à condição de ameaça.

Eu sinceramente não sei que conceito usaria. Mas sei que a responsabilidade que tenho hoje como historiadora não me permitiria usar o mesmo.

5. Seu trabalho é pioneiro em muitos aspectos. Você se vê como uma precursora do campo do pós-Abolição no sul do Brasil? 

Liane Susan Muller
Liane Susan Muller

Olha, quem me conhece sabe que não padeço de falsas modéstias. Eu nunca me ocupei de pensar sobre isso. Eu tinha uma colega negra na graduação. Tinha um professor negro na graduação. Hoje eu vejo muitos mais. E gente potente que eu gostaria de ter tido ao meu lado lá entre 97 e 99.

Na época, um bastantão branco me disse que meu trabalho seria um fracasso porque tudo, absolutamente tudo, sobre os negros em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, já havia sido escrito.

E eu não acreditei. Eu joguei o pé na porta. Como sempre fiz em tudo que me incomodasse na vida. E, de certa forma, o escrito até então não me preenchia. Era importante, sem a menor sombra de dúvida. Importantíssimo. Mas seguia sempre a mesma toada e, instintivamente, eu sabia que tinha mais. Tinha que ter mais. Porque as pessoas não são lineares, não são bem e mal. Há uma escala tonal entre as pontas da submissão e da revolta. E foi por aí que entrei.

Eu acredito, sim, ter feito um bom trabalho. Penso que deixei pontas preciosas para tudo o que se seguiu. Mas precursora? Prefiro acreditar que com muita alegria e gratidão honrei a história em sua jornada.

6. De que formas sua prática como pesquisadora e como educadora se alimentam mutuamente?

Isso é simbiose. Não existe uma prática separada da outra. Ambas se alimentam na mesma fonte: justiça, reparação, para todas, todos e todes, que por motivos diversos, mas imbricados, tombaram no caminho. Para quem é travado todos os dias, menosprezado todos os dias, através desse desmanche na educação planeado nas agendas 2020 e 2030. Os tempos são difíceis, duros mesmo. E nem Lula vai conseguir dar conta totalmente disso. Talvez oxigene para que a gente possa ganhar forças e seguir na luta contra a privatização da educação, contra o neoliberalismo na educação e suas disciplinas etéreas como “Projeto de Vida”, “Empreendedorismo” e afins.

7. Você é uma ativista histórica do movimento LGBTQIAP+ no sul do Brasil. Quais conexões você enxerga entre sua prática militante e seu papel como educadora e pesquisadora?

De novo é simbiose, e de novo sou apenas um pé na porta. Tive a sorte e um pouquinho de destemor pra botar a cara a tapa quando outras, outros e outres precisavam se esconder para ter direito à vida. A gente faz quando tem condições e recebe o feito de outres quando não tem. O que importa é a luta. A minha hoje é no chão da escola. Lá, formiguinha que sou, vou arejando terrenos, desconstruindo mofos, plantando pequenas sementes.

Meu compromisso é ser sempre mais estudiosa (já que ando sem forças para a pesquisa), tem trabalhos lindos sendo feitos por gente muito, muito potente, nessas duas pontas e em outras, como a questão ambiental. Procuro traduzir tudo para a língua deles, dos estudantes. Procuro deixar simples pra que não haja margem para enganos. Leitura de mundo? Quem vem? A jornada é longa. Tenho o privilégio de estar viva nesses dias, décadas, e ver tanta gente boa somar.

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