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Entrevista com Marcelo Moura Mello - Parte III

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana anterior, o antropólogo Marcelo de Moura Mello apresentou suas reflexões, que continuam abaixo, sobre a relação entre o campo etnográfico e a pesquisa em arquivos. Vamos acompanhar a conclusão da entrevista.

2022 07 20 Marcelo Mello
Marcelo Mello

6) No final de seu livro “Reminiscências dos Quilombos”, você discute a necessidade de “superar visões desqualificadoras do oral”. Para isso, é necessária “uma relação em outros termos com o arquivo”. Que termos são esses? Os profissionais, da Antropologia e da História, estão muito distantes dessa proposta?
Minha pesquisa com comunidades quilombolas se deu em um contexto no qual tais coletivos se veem impelidos a apresentar provas de sua ocupação territorial. Diante de tal estado de coisas, diversos(as) antropólogos(as) destacaram a necessidade de se relativizar as fontes escritas, afinal as trajetórias de coletivos marginalizados não costumam ser documentadas. Há relações assimétricas de poder a se considerar.
Apesar dos diversos avanços na historiografia, tenho a impressão de que ainda permanece certo ranço verificacionista. Alinho-me a Stephan Palmié e Charles Stewart quando ambos sugerem ser necessário colocar em suspenso os princípios que fundamentam a prática historiográfica profissional, notadamente as noções de validação empírica atreladas ao que se concebe e legitima como conhecimento histórico. Daí o interesse em pensar com formas de lembrar, que incluem desde narrativas orais até músicas, cantos, imagens visuais, compartilhamento de sonhos, práticas corporais, performances rituais, encontros com espíritos... 

7) Antropólogas e antropólogos como Celso Castro, Olívia Cunha e Adriana Vianna, dentre outros, têm proposto paralelos entre o trabalho de campo e a pesquisa documental em arquivos. Qual o potencial e quais os limites dessa analogia?
Creio ter mencionado alguns dos potenciais desses paralelos acima. Na pesquisa de campo mais clássica, a interação com pessoas cujas vidas estão se desenrolando em nossa presença é um tipo particular de experiência – pessoal e intelectualmente falando. As coisas estão acontecendo, em seus diferentes ritmos. Um de meus maiores interesses quanto à pesquisa de campo antropológica tem a ver com sua dimensão sensorial – algo aflorado neste momento em que traduzo o livro de Paul Stoller, “O gosto das coisas etnográficas”, para a Editora Papéis Selvagens. O contato com pessoas, coisas, animais, plantas (e mesmo com seres supostamente imateriais, como espíritos), a sonoridade, o universo de cores, luzes e sombras, os cheiros, a forma como o paladar é despertado... isso é um tanto visceral para mim. Trata-se de estar em contato com diversas formas de vida, com diversas formas de estar vivo. Não quero contradizer o que disse, ou reforçar oposições (oposições servem para pensar relacionalmente, não para criar contrastes estanques e rígidos), mas nos arquivos as experiências corporais são de outra ordem. Dito de outra forma, Ginzburg tem certa razão ao chamar a atenção para a “desmaterialização do texto” quando trata da emergência e consolidação daquilo que chamou de paradigma indiciário.

8) Dentro daquilo que Ann Laura Stoler denomina “archival turn” há espaço para diálogos com a Arquivologia, além da História?
Sem dúvida. A antropologia brasileira produz, há alguns anos, reflexões de interesse para a arquivologia. Há tempos, antropólogas(os) pesquisam acervos documentais; leem os diversos registros legados por profissionais do passado; revisitam diários de campo; contribuem para a conformação de acervos documentais acerca de povos indígenas e tradicionais. Há diversas instituições de ensino que ou contêm arquivos ou funcionam em instituições públicas de salvaguarda. Ademais, as questões relativas à repatriação e restituição de bens culturais, os debates sobre a descolonização de museus e arquivos e a participação, ativa e em pé de igualdade, de lideranças e intelectuais indígenas e quilombolas (e de outros coletivos tradicionais ou populares) na criação e na gestão de acervos documentais e arquivos, colocam questões de suma importância para a arquivologia e para a prática profissional cotidiana de arquivistas.
Além de Ann Stoler, Michel Rolph-Trouillot e Olívia Maria Gomes da Cunha me parecem incontornáveis. Trouillot por articular, de maneira sofisticada, o poder a momentos cruciais dos processos de produção da história, como os da criação e composição dos fatos (criação das fontes e dos arquivos). Suas reflexões sobre como os silenciamentos operam e sua ênfase na dimensão material da história são igualmente importantes. Já Olívia pensa o arquivo desde pelo menos seu doutorado, na década de 1990, fazendo-o de forma criativa e incorporando, criticamente, referenciais produzidos alhures. Seu livro recente, The Things of Others, acompanha o percurso de “coisas” criadas, analisadas e acumuladas por antropólogos, em especial no campo de estudos afro-americanos. O que está em jogo, dentre outras coisas, é compreender mais finamente não só como coleções etnográficas são produzidas, mas como artefatos documentais são produzidos em meio a diversas montagens e se transformam no decorrer de seus distintos percursos – os artefatos, por assim dizer, têm uma vida social. As contribuições desse livro são imensas. Por fim, mencione-se os trabalhos acerca das rotinas burocráticas, das práticas de gestão estatal, das burocracias. Penso, aqui, nos trabalhos de Annelise Riles, Adriana Vianna, Letícia Ferreira e Laura Lowenkron. Carlos Gomes de Castro e Rogério Vianna também produziram trabalhos interessantíssimos com base em pesquisas em arquivos.

Suspeito haver muitas pistas aí para a arquivologia, mas seria interessante, para mim, ouvir mais o que profissionais da área de arquivologia têm a dizer. Ter o arquivo como campo não implica estacar em um lugar. Os documentos não são imóveis: eles permitem tramar várias histórias.

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