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Entrevista com Marluce Dias Fagundes - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na última segunda-feira, dia 21 de novembro, Marluce Dias Fagundes nos narrou um pouco sobre sua trajetória profissional, e também especificou o papel das fontes salvaguardadas pelo Arquivo Público em suas pesquisas. Vamos conhecer a segunda parte de sua entrevista.

5) De que forma sua pesquisa sobre crimes sexuais ajuda a relativizar, ou talvez refutar, o caráter “dourado” daqueles anos?

O propósito da pesquisa foi tratar do caráter violento em crimes sexuais, que na historiografia brasileira notou-se ser silenciado pelas questões matrimoniais ou relacionadas à vida cotidiana dos sujeitos das camadas populares. Não fugimos por completo do que havia sido feito em trabalhos anteriores sobre crimes sexuais, pois esses delitos estão diretamente ligados à honra e a moral. Mas, sobretudo foi preciso frisar que a documentação parte de denúncias sobre supostos crimes cometidos. Crimes esses não caracterizados como violentos. Pois, esses casos de crimes sexuais são contornados por um discurso de “reparação”. Essa reparação ocorria com o casamento entre a ofendida e o acusado, ou seja, entre a vítima e seu agressor. E que seria uma estratégia das ofendidas em “arranjar” casamentos. Nas décadas de 1950 e 1960 uma mulher solteira deveria sonhar em realizar um bom matrimônio. Um bom casamento não necessariamente é casar com que se escolhe, mas como um homem capaz de prover um lar.

Homens e mulheres que estampavam as páginas dos processos e inquéritos trabalhados estavam condicionados ao julgamento dos operadores do direito, desde a abertura da queixa-crime, com o escrivão e o delegado de Polícia, responsáveis por manipular as falas dos que recorriam ao Estado, para resolução de conflitos. As mulheres, meninas entre 11 anos e 18 anos, em sua maioria, tinham sua honestidade e moral colocada à prova. Os discursos jurídicos recorriam a termos que outorgavam as mulheres adjetivos pejorativos como “mentirosas e ardilosas”. É nítido na documentação analisada que não só as mulheres eram subjugadas pelos operadores do direito, mas os homens populares, principalmente, eram constantemente avaliados na figura do “bom trabalhador”.

Foi possível estabelecer, ainda que de maneira breve, uma visualização do espaço urbano que crescia aceleradamente, mas também, dos entornos, dos vazios e dos locais ermos onde serviram de cenário para os sujeitos que configuraram os crimes. O contraste do urbano com o rural é também o contraste entre a noção de público e privado. Uma vez que nas áreas mais urbanizadas de Porto Alegre, como o centro, esses crimes ocorreram dentre de hotéis, pensões e “rendez-vouz”. Em contrapartida, os locais da cidade com menor infraestrutura e às margens da metrópole que crescia verticalmente, aconteciam à “céu aberto”.

Historiadora Marluce Dias Fagundes
Entrevistada do mês de outubro, Marluce Dias Fagundes.
Para isso, eu acho que a minha pesquisa teve uma preocupação de pensar sobre a cidade de Porto Alegre, além da sua área central. Foi um pouco difícil pelo limitado número de trabalhos, mas foi um exercício necessário para refletir sobre como era a mobilidade dessa cidade “dourada”. A maioria das mulheres ofendidas, nos casos analisados, era oriunda das camadas pobres, então elas tinham uma circulação pela cidade que precisava de atenção. Ao mesmo tempo, em que cruzavam o centro da cidade, que já estava em processo de verticalização, a realidade era outra, pois pertenciam aos arrabaldes da cidade, ainda muito esquecido pela administração pública. Portanto, a análise dos locais em que ocorreram os crimes foi importante para contradizer o discurso de uma cidade em harmonia, moderna e que vivia a sua época “dourada”, de bailes e inauguração de grandes obras.

6) O período que você estuda é um pouco menos explorado pelos historiadores. O interesse majoritário na historiografia da República está voltado à Primeira República, à Era Vargas e à ditadura de 1964. Você concorda? A que você atribui essa possível lacuna e quais os desafios em pesquisar sobre um período no qual há menos bibliografia para estabelecer diálogos?

Concordo que, por muitos anos, o interesse das historiadoras e dos historiadores, sobretudo esteve na Primeira República, e mais tarde voltado para os períodos autoritários como a Era Vargas e da Ditadura Civil-Militar. Quando iniciei a revisão temporal para a pesquisa do mestrado tive muita dificuldade em encontrar outros trabalhos sobre o período, pois a maioria ainda estava voltada para as relações e atores políticos da chamada “Experiência Democrática”. Esse foi um aspecto que me levou a ter interesse em explorar esse período entre ditaduras, de um pouco mais de uma década. Com o fim do Estado Novo, e mais ainda com o Código Penal, criado em 1940, e do Código de Processo Penal, em 1942, era importante refletir o como as instituições recém-saídas de um governo repressivo e centralizado passa a por em prática as ações do Estado. Entretanto, o limite de trabalhos sobre o período me favoreceu em encontrar nas fontes judiciais resposta a cerca da organização social. Acredito que este seja o caminho para que outras pesquisas que explorem outros elementos, no meu caso foram possíveis compreender que os marcadores sociais da diferença são ressaltados nas conclusões dos atores jurídicos, pois demonstram uma intenção, às vezes efetiva, de controle sexual e social sob os corpos de homens e mulheres envolvidos nos casos. Além da prática de justiça, não só dessa época, em que se nega a violência. Sendo ela, desconsiderada, ou “julgada improcedente” acaba se revertendo contra as mulheres ofendidas. Estas têm suas vidas medidas por um “coeficiente de moralidade”, não previsto na legislação. Essas vidas são reviradas e transformadas em critérios jurídicos que podem ou não legitimar uma denúncia. A violência contra as mulheres é mais uma vez praticada, sendo que ela vem sendo usada desde o ato sexual, passando pela ida à Delegacia, pela submissão ao exame de corpo de delito e por todas às vezes que têm sua vida exposta à dúvida da palavra.

Na próxima sexta-feira (25/11) , leia a parte final da entrevista com a pesquisadora!

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