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Entrevista com Vanderlei Machado - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana anterior, conhecemos as temáticas e preocupações de pesquisa na dissertação e na tese do historiador Vanderlei Machado (acesse a 1ª parte da entrevista aqui). Confira a continuidade da entrevista!

3) Como você direcionou seus interesses de pesquisa para o estudo das paternidades? E por que optou pelo período da ditadura de 1964-1985?

R. Em 2008 iniciei uma pesquisa sobre a história de mulheres que lutaram contra a ditadura. Essa pesquisa me instigou a pensar na participação dos pais de militantes políticos nesse mesmo contexto. A questão da maternidade tem recebido bastante atenção por parte dos estudos de gênero. Da mesma forma a questão do uso da maternidade como instrumento de tortura durante a ditadura milita no Brasil também tem sido objeto de estudos por parte de historiadoras e de denuncias pela Comissão Nacional da Verdade. Como exemplo, menciono os trabalhos desenvolvidos por Elizabeth Fernandes Xavier Ferreira, Janaína Athaydes Contreiras, Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento e Ivonete Pereira.1 Estes textos apresentam casos de militantes que estavam grávidas ou que eram mães no momento em que foram presas por órgãos da repressão. Estes trabalhos me instigaram a pensar o uso da paternidade como forma de tortura empregada contra homens que eram pais quando foram presos e torturados pela repressão, entre 1968 e 1974, tema ainda não estudado pela historiografia.

Desde 2012, venho desenvolvendo o projeto de pesquisa intitulado “Gênero e paternidade entre militantes que combateram a ditadura no Brasil”. Com essa pesquisa, fui contemplado com uma bolsa de Pós-doutorado Júnior do CNPq, no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, em 2012. Inicialmente analisei, em livros de memória publicados por e sobre ex-militantes de esquerda, as representações de masculinidade e de paternidade veiculadas, relacionando-as com registros policiais, presentes nos arquivos do DOPS do Rio de Janeiro, a respeito das tentativas paternas de auxiliar filhos e filhas que foram alvo da repressão durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Busquei também avaliar até que ponto esses diferentes registros nos informam sobre os limites, as possibilidades e a legitimidade da atuação paterna diante da prisão, tortura, morte e desaparecimento de seus filhos e filhas.

Em 2013, tive contato com os documentos que servem de fonte para as pesquisas que estou desenvolvendo atualmente: trata-se dos processos que fazem parte do fundo Comissão Especial de Indenização, criada pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1997 e que atuou até 2004. Esses processos, que estão sob a guarda do APERS, contêm solicitações de indenização que foram encaminhadas por pessoas, nascidas no Rio Grande do Sul ou não, que foram presas ou detidas, legal ou ilegalmente, por motivos políticos entre setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, em dependências ligadas ao governo estadual. 2

O contato com tal documentação ocorreu após o convite que recebi das colegas Carla Rodeghero e Clarissa Sommer Alves, para participar do Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS, coordenado por elas. Este Programa de Extensão, contemplado na oportunidade, com recursos do Edital Proext do MEC, tem, entre seus objetivos, a formulação de oficinas para o Ensino Médio focadas na temática Ditadura e Direitos Humanos.

4) Em que as fontes do Arquivo Público têm ajudado em suas pesquisas mais recentes?

Ao trabalhar com os processos de solicitação de indenização, começou a ficar evidente uma questão que quase não aparecia em outras fontes até então analisadas, sejam livros de memória, relatos de história oral ou notícias de jornais. Qual seja, os processos de indenização traziam relatos de homens e sobre homens, militantes de grupos de esquerda ou não, que eram pais na época em que foram presos ou detidos pela repressão no Estado do Rio Grande do Sul.

Vanderlei Machado, historiador
5) Boa parte de sua atuação profissional tem sido no ensino básico. De que maneiras suas atividades como professor e pesquisador implicam-se mutuamente?

R. Em minhas pesquisas procuro sempre dialogar com as atividades de ensino, pesquisa e extensão que desenvolvo no Colégio de Aplicação da UFRGS, como o projeto “A História das mulheres que os livros didáticos não contam”, concluído recentemente. Este estudo surgiu da percepção sobre a ausência da história de mulheres que lutaram contra a ditadura militar no Brasil nos livros didáticos de história. Além de analisar e descrever a forma como os manuais de história para o ensino médio apresentavam a participação de mulheres na resistência contra a ditadura, a pesquisa permitiu realizar um levantamento bibliográfico sobre a maneira como a historiografia tem abordado a participação feminina e as diferentes formas de resistência de mulheres contra a ditadura no Brasil. Nesse esforço, foram reunidos e analisados trabalhos acadêmicos e outras publicações que tratam da participação feminina nas organizações de esquerda que combateram a ditadura.

O levantamento bibliográfico e o contato com fontes históricas, como entrevistas de história oral e livros de memória, levou ao conhecimento de uma série de histórias de mulheres que se opuseram à ditadura de diversas maneiras, como militantes no Movimento Estudantil, participando em organizações de esquerda clandestinas, que pegaram em armas ou não, na denuncia da prisão, tortura, morte e desaparecimento de seus/as filhos/as e maridos, na atuação no Movimento Feminino pela Anistia e no Comitê Brasileiro pela Anistia, entre outras. Estas informações foram utilizadas para a elaboração e publicação de artigos3. Além de serem utilizadas em textos didáticos e outros materiais pedagógicos em sala de aula.

6) Você acompanha, desde o começo, o Programa de Educação Patrimonial UFRGS-APERS. Como foi sua experiência e como você percebe a relação entre ensino, pesquisa, memória e História Pública nessa iniciativa?

R. Tenho buscado contribuir com o Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS, desde as primeiras reuniões de planejamento. As oficinas desenvolvidas neste Programa utilizam como materiais didáticos fac-símiles de processos administrativos de indenização de ex-perseguidos pela repressão no Rio Grande do Sul.

O contato com esses documentos possibilita conhecer as histórias de homens e mulheres que foram presos/as e torturados/as no Rio Grande do Sul e que solicitaram indenização. Através de alguns processos, previamente selecionados, a oficina busca demonstrar as diferentes formas de resistência que as organizações clandestinas de esquerda adotaram para se opor a ditadura e as ideologias que norteavam suas ações.

Além de participar das discussões e da elaboração da oficina, desde 2013, também tenho acompanhado os/as estudantes das turmas em que eu leciono no CAp da UFRGS ao Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) para participarem da oficina. Uma dessas experiências foi descrita e analisada no artigo intitulado “Educação Patrimonial, Direitos Humanos e Memória: um relato de experiência na educação de Jovens e Adultos”, escrito em co-autoria com Marla Assumpção.4 Na elaboração do texto, exploramos os nossos planos de aulas e as avaliações elaboradas pelos estudantes sobre as atividades desenvolvidas no APERS.

Ao longo desses anos tenho levado estudantes da EJA e do nono ano do Ensino fundamental para participarem da oficina no APERS. Em relação à temática focalizada pela oficina, observa-se que os estudantes mais novos não vivenciaram o período da ditadura no Brasil, ainda que, indiscutivelmente, vivam em uma sociedade que carrega algumas marcas desse momento. Além disso, via de regra, alguns estudantes afirmam desconhecer aspectos concernentes ao período ditatorial, ainda que vários se recordem de matérias jornalísticas sobre o tema. Em relação aos estudantes da EJA, com mais de cinquenta anos, muitos/as compartilhavam, durante as discussões em sala de aula, algumas lembranças sobre o período. Entre elas, sobressaíam questões vinculadas a figuras de líderes políticos, tais como Leonel Brizola, e também ideias ainda bastante arraigadas de que durante os governos militares os índices de criminalidade e corrupção eram inexpressivos e que naquele período existia um maior respeito às hierarquias, tanto no espaço privado, da família, quanto no espaço público. Essas colocações eram desvinculadas do contexto de censura, repressão, entre outros, característicos do período histórico em questão. Destaco que tivemos estudantes que afirmaram que mudaram a visão que tinham da ditadura militar após participar da oficina no APERS. Ou seja, eles ressignificaram suas memórias a partir das informações a que tiveram acesso através da documentação presente nos processos de solicitação de indenização. As oficinas do APERS foram elaboradas por pesquisadoras/es do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e da UFRGS e elas são, enquanto práticas pedagógicas, um exemplo importante de que pesquisa, ensino e extensão são indissociáveis. Costumo afirmar que após participarem das oficinas as/os estudantes passam a dirigir outro olhar para o APERS. Ou seja, o Arquivo passa a ser reconhecido e valorizado, por uma parcela mais ampla da população, como um espaço de pesquisa e de memória.

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1 FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, 154; Cruz, J. P. D., Gianordoli-Nascimento, I. F., Oliveira, F. C., Santos, T. L. A., Mendes, B. G., Freitas, J. C., & Reis, D. B. Gerando vida em contexto de morte: o exercício materno em situações de militância durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). IN: Psicologia e Saber Social, 4(1), 126-150, 2015;PEREIRA, Ivonete. Estudo de casos: narrativas sobre a militância e a maternidade nas ditaduras brasileira e argentina (1964-1989) In: História Oral, v. 12, n. 1-2, p. 103-128, jan.-dez. 2009; CONTREIRAS. Janaína Athaydes. Terrorismo de Estado e violência sexual na ditadura brasileira (1964-1985). Trabalho de Conclusão de Curso (departamento de História, UFRGS, 2015.

2 Lei Estadual nº 11.042 de 18 de novembro de 1997.

3 RODEGHERO. C.S; MACHADO, V. A História recente nos livros didáticos de História: a ditadura militar e a questão da anistia no Brasil. Revista Cadernos do Aplicação (UFRGS), v. 23, p. 165-198, 2010; MACHADO, Vanderlei. A luta das mães de presos e desaparecidos políticos contra a ditadura no Brasil. In. Anais da Jornada de estudos sobre ditaduras e direitos humanos. Porto Alegre: APERS, 2011. www.apers.rs.gov.br/.

4 MACHADO, V.; ASSUMPÇÃO, M. B. Educação Patrimonial, Direitos Humanos e Memória: um relato de experiência na Educação de Jovens e Adultos. Instrumento – Revista em Estudo e Pesquisa em Educação, v. 18, p. 185-197, 2016.

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul