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Genealogia afro-brasileira: o que podemos aprender com Thereza e seus descendentes?

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Capa do livro "Thereza: uma genealogia afro-brasileira" de Marcelo Leal
Capa do livro "Thereza: uma genealogia afro-brasileira" de Marcelo Leal
Por Álvaro Antonio Klafke - APERS

Um dos tipos de pesquisa mais demandados no APERS é, há muito tempo, o dos estudos genealógicos, sobretudo de ascendência europeia. Bem menor é a representatividade da genealogia de famílias afro-brasileiras. Isso se deve a uma série de fatores, que vão desde as construções sociais e culturais que desvalorizam ou negam tal possibilidade, passando pelo relativo desinteresse da própria historiografia – que pouco se preocupou com a genealogia, e menos ainda com a afrodescendente e indígena, com honrosas e meritórias exceções –, até os obstáculos concretos das dificuldades de documentação.

Felizmente, graças a mudanças sociais e culturais vivenciadas no Brasil nas últimas décadas, isso está se modificando. 2023 é o ano que marca o vigésimo aniversário da Lei 10.639, que tornou obrigatório, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Fruto da pressão dos movimentos que revalorizaram o tema da identidade e pertencimento de grande parte da população brasileira, as mudanças na legislação apontam para uma saudável e tardia democratização do ensino e, espera-se, das relações sociais no país. Há um caminho longo a percorrer, mas alguns passos são dados.

E um dos resultados mais gratificantes desse processo, sobretudo para quem trabalha na sala de pesquisa de um arquivo público, é perceber que há um incremento das solicitações por documentação relativa à genealogia de famílias de pessoas escravizadas e a permanência e continuidade de seus familiares no pós-abolição. Tais pesquisas, a despeito das dificuldades, redundam, muitas vezes, em satisfação e orgulho pela reconstituição de uma história que ajuda a mapear e fixar laços de pertencimento. Eventualmente, também originam trabalhos de maior fôlego, como artigos ou livros.

Exemplo desse último tipo é a obra “Thereza: uma genealogia afro-brasileira”, de Marcelo Leal (2023, Ed. do autor). Com a reconstituição de sua genealogia familiar, Leal objetiva, mais amplamente, falar da “contribuição, para o nosso país, dos africanos e sua descendência”. Além disso, também se propõe a incentivar a outras pessoas a buscar e contar a história dos seus antepassados. Cumpriu, com méritos, o que se propôs.

Trata-se de um trabalho de pesquisa bastante completo, pelo cruzamento de vários tipos de fontes, oriundos, igualmente, de vários tipos de arquivos. Valendo-se de acervos do registro civil, eclesiásticos, notariais, judiciais, históricos de várias localidades, o texto revela uma pesquisa tenaz. Além disso, todo esse esforço foi embasado por um conjunto de aportes bibliográficos – sobretudo da historiografia pertinente – possibilitando uma apreensão contextual que lhe permitiu explorar a fundo o conjunto documental, bem como analisar alguns conceitos e noções centrais no seu trabalho, tais como “colorismo”, “racismo estrutural”, entre outros. Ressalte-se que o autor não possui formação profissional em História ou áreas afins (é profissional de TI), o que só aumenta seus méritos.

Dos acervos do APERS, Leal valeu-se de uma série de documentos que incluem Cartas de Liberdade; Habilitações de Casamento; Registros de compra e venda de escravizados; Processos crime e Inventários. É desse conjunto documental que advém uma das (tantas) belas passagens do livro, quando, em um inventário, surge o nome de Thereza, a matriarca, junto com seu filho Vicente, ambos escravizados. A despeito da brutalidade da situação, era uma evidência de uma ligação parental fundamental para toda a reconstituição familiar.

Sem nunca perder de vista as noções de identidade e pertencimento, numa grande sacada, o autor também faz questão de reproduzir, quando possível, a fotografia e a assinatura dos ancestrais, conferindo-lhes imagens e escritas de próprio punho que nos dão a sensação de realmente estar “conhecendo” aquelas pessoas. É por essa mescla de rigor científico bem dosado com afetividade, reflexão e denúncia de situações de injustiça e desigualdade profundas, pretéritas e atuais, que a história de Thereza e sua descendência constitui-se em um belíssimo exemplo das possibilidades da pesquisa em genealogia afro-brasileira. Não é fácil, mas é factível, e os resultados podem ser muito compensadores.

A pesquisa rigorosa mais a afetividade vinculada à relação parental propiciam passagens que emocionam, como a que me permito reproduzir para finalizar. Refletindo sobre as relações de compadrio entre africanos (livres e escravizados), surgida a partir do batismo de um filho de Thereza, o autor, num belo momento de imaginação histórica e genealógica, se vê pensando que “pelo menos naquela união em torno do seu recém-nascido com o nome igual ao do pai, estavam apenas cinco africanos em comunhão espiritual, como se em casa estivessem. Uma família iorubá.”

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