Ilha do Presídio: um lugar de memória para dizer “Ditadura nunca mais”!
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Do banco do veleiro que se aproxima da Ilha das Pedras Brancas, (...) o jornalista Antônio Pinheiro Salles aponta uma guarita que se destaca em cima de uma rocha e comenta: “Eu olho para aquela guarita ali e vejo o policial com o fuzil apontado para a gente”. Então, percorre com os olhos a lateral norte da ilha, à procura da segunda guarita, à sua direita, onde imagina o outro guarda, também com a arma apontada para a Tenebrosa - apelido dados pelos presos políticos à balsa que os levava daquele local de custódia para as sessões de tortura no Dops, na década de 1970.[1]
Podemos pensar em Antonio Pinheiro Salles fazendo a travessia entre Porto Alegre e a Ilha, durante a ditadura. Algo que a sensível fotografia registrada quase 50 anos depois pelo El País nos ajuda a imaginar. Assim como Pinheiro Salles, podemos imaginar nesse trajeto Calino Ferreira Pacheco Filho, Carlos Alberto Tejera de Ré, Diógenes Sobrosa de Souza, Índio Vargas, Manoel Raymundo Soares, Raul Jorge Anglada Pont, Vera Maria Idiart Schimitt... E tantos outros.
Conforme destacamos na postagem anterior sobre a histórica Ilha das Pedras Brancas, também conhecida por Ilha da Pólvora ou Ilha do Presídio, este é um lugar que carrega íntima relação com as memórias da ditadura civil-militar em nosso estado, assim como com o acervo do APERS. Ela é referida em diversos relatos de ex-presos políticos registrados nos processos de indenização – requeridos à Comissão Especial de Indenização, que funcionou do RS entre 1997 e 2002 – ou em depoimentos à Comissão Estadual da Verdade – que atuou entre 2012 e 2014. Os documentos produzidos no decurso do trabalho de ambas as Comissões deram origem a acervos recolhidos ao Arquivo Público, que hoje podem ser consultados e colaborar decisivamente para que a história desse período, marcada pela perseguição e tortura aos opositores do regime, pela corrupção e pela censura, seja (re)conhecida.
No momento em que foi deflagrado o golpe de 1964 – cujo aniversário de 58 anos rememoramos essa semana – a Ilha já era utilizada como cárcere para presos comuns, abrigados nas antigas construções, agora adaptadas, erigidas no século XIX para armazenar pólvora. Vale lembrar que a década de 1950 assistiu a uma grave crise do sistema penitenciário gaúcho, marcada por superlotação e desestrutura dos locais de prisão, com denúncias contundentes que levaram o governo estadual a instituir uma Comissão de Reaparelhamento Penintenciário, sobre a qual é possível acessar informações a partir de nosso acervo da Secretaria de Interior e Justiça.
A Ilha tornou-se um presídio de segurança máxima, do qual diversos presos morreram tentando fugir. Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, estima que mais de 100 presos políticos passaram por lá, porém, seus nomes jamais foram revelados oficialmente pelas autoridades[2]. Em 2020 o historiador Bruno Azambuja Silveira defendeu, junto ao PPG em História da UFRGS, uma dissertação sobre a Ilha. Nela, registra o nome de 73 destes detentos, que conseguiu confirmar tendo como fonte principal os processos de indenização salvaguardados pelo APERS. Ou seja, em um universo de 1.704 processos de indenização abertos contra o estado do RS, 73 pessoas declaram terem sido presas nas Pedras Brancas. Certamente podemos supor que o número de detidos foi maior, considerando que nem todos os ex-presos e perseguidos políticos entraram com tal pedido.
Bruno destaca dois momentos distintos do cárcere no contexto da ditadura. O primeiro deles, ocorrido entre 1964 e 1967, vinculou-se à chamada “operação limpeza”, quando os militares dedicaram-se em prender, expurgar e afastar da vida política militantes, estudantes e trabalhadores, da cidade e do campo, que fossem contra o regime. Naquele momento, o foco da perseguição estava sobre os defensores do presidente deposto, João Goulart, e militantes ou simpatizantes do trabalhismo (vinculado ao PTB). Nessa fase, as prisões políticas na Ilha ocorreram em menor número e foram totalmente clandestinas. Os presos estavam sujeitos a péssimas condições de salubridade e a torturas improvisadas, como sessões de afogamento. As detenções foram suspensas quando algo saiu do controle dos militares: ainda em 1966 o corpo de Manoel Raymundo Soares, ex-sargento da Brigada Militar, foi encontrado no Rio Jacuí. Ele fazia parte do grupo de suboficiais que defendia o projeto nacional-desenvolvimentista do governo Jango, resistiu ao golpe e ficou preso por cinco meses na Ilha. Com as mãos amarradas para trás e bárbaros sinais de tortura, o corpo morto causou escândalo e tomou a imprensa. Os agentes de segurança e a Assembleia Legislativa foram pressionados pela abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar aquele que ficou conhecido como o “caso das mãos amarradas”, colocando em evidência perante a sociedade gaúcha os acontecimentos na Ilha do Presídio.
O segundo momento deu-se entre 1970 e 1973, marcado, em nível nacional, pelo recrudescimento do regime e pela repressão às organizações de luta armada. O fechamento de partidos, sindicatos e organizações estudantis, assim como a impossibilidade da luta de resistência nas ruas, levou diversos grupos políticos de esquerda para a atuação clandestina radicalizada. Grande parte desses grupos acabou desmantelada, com seus militantes levados para os porões da ditadura. Essa realidade incidiu sobre a Ilha com a retomada de seu uso para confinamento de presos políticos, em maior número do que ocorrera na primeira fase, agora com maior grau de institucionalização e vigilância, de modo articulado com outros órgãos do aparato repressivo.
Foi nessa fase que Antônio Pinheiro Salles chegou à Ilha. Jornalista, nascido em 1937, natural de Minas Gerais, iniciou sua atuação política no movimento estudantil. Após a decretação do AI-5 passou a integrar organizações de resistência revolucionárias: Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), Partido Operário Comunista (POC) e Movimento Comunista Revolucionário (MCR). Foi sequestrado e detido em Porto Alegre em 1970, ano conhecido por diversos militantes como “ano do terror” na cidade em virtude da grande violência empregada pelo Estado no combate à luta armada – conforme bem expressou a reportagem do El País que abre essa publicação. Esteve confinado por nove anos, em diversos locais mantidos pelo aparato repressivo, como o DOPS de Porto Alegre, onde sofreu as mais atrozes torturas, a Ilha do Presídio, o VI Regimento da Cavalaria de Alegrete, no interior do RS, o Presídio Central de Porto Alegre e a Penitenciária Estadual do Jacuí, além da sede da Operação Bandeirantes (Oban) mantida pelo DOI-Codi de São Paulo. Seu processo de indenização reúne: requisição de abertura; declaração de que ainda não recebera indenização semelhante; cópias de documentos expedidos pela Justiça Militar que comprovam seu julgamento e prisão após enquadramento na Lei de Segurança Nacional; crônicas publicadas em jornais, assim como poemas e excertos de livros; atestado médico e seu depoimento pessoal. Seu comovente relato sobre as torturas sofridas, em meio ao sonho de uma sociedade mais justa, não deixa dúvidas sobre a posição que precisamos assumir, seja na semana de aniversário do golpe ou em qualquer outro momento: ditadura nunca mais!
Nas palavras de Pinheiro Salles:
“Mas falar sobre isso, Sr. Presidente, ainda me deixa tenso, angustiado, sem condições de reunir as palavras adequadas à minha narrativa. Estou, neste momento, requerendo a indenização aprovada pela Assembleia Legislativa do meu querido Rio Grande do Sul. Faço-o com a convicção de que esse dinheiro representa uma conquista democrática do nosso povo. (...) Mas preciso acrescentar que essa indenização, por mais relevante que seja o seu significado para cada um de nós – vítimas das atrocidades do governo militar –, não pode suprimir e nem mesmo abalar a nossa responsabilidade de continuar denunciando a violência sofrida. O meu corpo e o meu sangue testemunharam aquilo que jamais deve voltar a atingir qualquer ser humano” (Processo de Indenização, folha 27 e 28)
Você pode ler a íntegra de seu depoimento, assim como outras partes de seu processo de indenização, clicando para ampliar as imagens do carrossel, a seguir. Aqui, tomamos sua história como fio condutor capaz de conectar a história da Ilha do Presídio, de dezenas de ex-presos que por lá passaram durante a ditadura, e de milhares de cidadãos e cidadãs brasileiras que lutaram contra aquele regime de exceção. São histórias que marcam lugares, experiências de vida e experiências coletivas, todas elas constituintes, tanto pela memória quanto pelo esquecimento, do Brasil que somos hoje.
Enquanto instituição arquivística pública, comprometida com os direitos humanos e a democracia, que possamos colaborar para que a memória vença o apagamento e a mentira. Ademais, tomamos a liberdade de, através das memórias compartilhadas por Pinheiro Salles, fazer deferência às memórias de duas pessoas muito especiais, dois bravos lutadores pela memória, verdade e justiça e grandes parceiros que perdemos recentemente: Enrique Serra Padrós, presente! Nilce de Azevedo Cardoso, presente!
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Para acessar o Catálogo que descreve o acervo produzido pela Comissão Especial de Indenização a ex-presos políticos, clique aqui.
Para acessar o Catálogo da Comissão Estadual da Verdade, clique aqui.
Para acessar o processo de tombamento da Ilha do Presídio pelo IPHAE, como patrimônio estadual, clique aqui - o processo foi realizado em 2014 por indicação da Comissão Estadual da Verdade, considerando a importância da Ilha enquanto lugar de memória da ditadura.
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[1] Excerto da reportagem “Reencontro com 1970, o ano do terror em Porto Alegre”, de Naira HOFMEISTER para El País Brasil. 22 dez. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/politica/2019-12-22/reencontro-com-1970-o-ano-do-terror-em-porto-alegre.html. Acesso em 01 abr. 2022.
[2] Ibidem.