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Mulheres e resistência à ditadura: 60 anos de luta

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Comissão Estadual da Verdade - Nilce Cardoso
. - Foto: Comissão Estadual da Verdade - CEV
Por Ana Carolina Ricardo Golombiewski/ APERS

A militante pelos direitos humanos, Nilce Azevedo Cardoso, que nos deixou em 2022,  foi uma das 1.704 pessoas que protocolaram processos à Comissão Especial de Indenização a Ex-presos Políticos do Estado do Rio Grande do Sul. O depoimento que escreveu à Comissão escancara as formas como a opressão vivenciada pelas mulheres que resistiram à ditadura civil-militar foi intrinsecamente vinculada à violência de gênero. Nas torturas sofridas, eram alvejadas pela sua condição de mulher, tinham laços familiares utilizados para intensificação de sevícias e foram vítimas de abusos de cunho sexual. Com o desejo de fomentar o estudo acerca das experiências específicas de mulheres na luta contra a ditadura e os efeitos da repressão sobre as suas vidas, trazemos uma breve reflexão que coloca em perspectiva a atuação das mulheres na resistência enquanto rememoramos os 60 anos do Golpe de 1964.

A década de 1960 se caracterizou pela compreensão de que “o pessoal é político”. A Segunda Onda Feminista trouxe reivindicações vinculadas aos espaços de estudo, trabalho e participação social, e protagonizou a luta por direitos sexuais e reprodutivos. Não só agentes políticas que questionavam o governo, mas também sujeitas que subvertiam as expectativas de gênero, raça e classe, as mulheres foram, assim, consideradas duplamente transgressoras pela ditadura civil-militar. As diferentes frentes que ocuparam revelam marcadores sociais constitutivos da sociedade brasileira e a fundamentalidade de sua atuação para o fim do regime antidemocrático no país.

Revista Brasil Mulher   1976 Memórias da Ditadura
Revista Brasil Mulher - 1976 Memórias da Ditadura

As mulheres da periferia levantaram importantes bandeiras durante o período. Resultados do chamado “milagre econômico”, o aumento da dívida externa e da desigualdade social as atingiu de forma veemente. Laços de vizinhança e solidariedade foram desenvolvidos em cidades que passavam por rápida urbanização. Associações de bairros, comunidades eclesiais de base e clubes de mães buscavam pressionar o poder público por melhores condições de vida, lutando por moradia, transporte coletivo, postos de saúde e creches. Surgiu em 1973, então, o Movimento do Custo de Vida, também conhecido como Movimento contra a Carestia, que, cinco anos depois, levou mais de 20 mil pessoas à Praça da Sé, em São Paulo. O ato público coletou mais de 1 milhão e 300 mil assinaturas para abaixo-assinado que protestava contra a política econômica do regime militar e reivindicava o congelamento de preço dos produtos de necessidade básica e o fim do arrocho salarial. A radicalização da repressão do Estado após o AI-5 e a inexistência de vias legais de participação política levou muitos militantes de esquerda à luta armada. Tendo suas possibilidades de atuação nos movimentos estudantil, sindical e partidário esgotadas pela perseguição, inúmeras mulheres recorreram à clandestinidade. Além de pegarem em armas, esconder objetos em suas casas e intermediarem mensagens entre membros dos grupos clandestinos, também atuavam como enfermeiras e professoras. Nilce, por exemplo, se engajou desde cedo com a educação popular e, por meio da Ação Popular (AP), veio a Porto Alegre na clandestinidade para trabalhar nas indústrias Renner, em um movimento que buscava aproximar as e os militantes da classe operária. Diante da perseguição, passou a atuar como professora de matemática na rede pública do estado, função que exercia quando foi presa em uma parada de ônibus, em 1972. 

Meu pai me perguntou se tinha valido a pena tanta dor. Na época, eu só respondi que sabia com o que eu estava comprometida e quais seriam as consequências. Agora, propondo-me a escrever sobre as torturas que me foram impostas, essa pergunta aparece novamente. Passados trinta anos, o sentimento que me assalta é de esperança e, ao mesmo tempo, de horror.

Trecho inicial do depoimento “Sim, meu pai, também posso dizer: ‘Nossa luta não foi em vão’”, de Nilce Azevedo Cardoso, em março de 1998

Movimento pela anistia
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As mulheres também tiveram papel central na busca de mortos e desaparecidos pela ditadura civil-militar. Foram mães, filhas, esposas, irmãs e amigas que se engajaram - e continuam se engajando - na denúncia dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro e na reivindicação por “memória, verdade e justiça”. Em 1975, surge o Movimento Feminino pela Anistia, que ganhou repercussão internacional quando Therezinha Zerbini - liderança do movimento - participou da 1ª Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU como parte das comemorações do Ano Internacional da Mulher. Nela, foi divulgado o Manifesto da Mulher Brasileira, que reivindicava “anistia ampla e geral a todos aqueles que foram atingidos pelos atos de exceção”, tendo recebido 16 mil assinaturas no Brasil. A partir de 1978, começam a se organizar Comitês Brasileiros pela Anistia em vários estados do país, sendo liderados principalmente por mulheres.

Nilce Azevedo Cardoso
Nilce Azevedo Cardoso no evento "Mulheres na resistência à ditadura: relatos à Comissão Estadual da Verdade", em 08.03.2013. - Foto: Comissão Estadual da Verdade - CEV

Muitas mulheres como Nilce, Suzana Lisbôa,  Ignez Serpa, Maria Amélia de Almeida Teles e tantas outras, transformaram suas experiências pessoais de dor, de perseguição, de tortura, de perda de companheiros, em disposição coletiva de luta por memória, verdade e justiça. Uniram suas vozes na denúncia aos crimes da ditadura, atuando diretamente na forma de depoimentos em eventos, aulas públicas, Comissões e, também, através da escrita. Subvertendo a lógica que costuma impregnar-se na historiografia, lutaram contra a inviabilização e o apagamento de suas narrativas e impulsionaram outras na mesma direção.O processo de transição negociada, lenta e gradual, que deu fim à ditadura civil-militar, permitiu a institucionalização de uma política de esquecimento em detrimento da memória das vítimas da repressão. A reivindicação da memória de luta contra a ditadura e por uma sociedade mais justa, que pautava a atuação daquelas e daqueles que resistiram se faz, assim, constantemente necessária. 

Sim, meu pai, continuo achando que valeu a pena. Hoje, felizmente continuo viva e, tendo feito o luto dos companheiros que foram assassinados, sigo em busca de meus sonhos, firme na luta, sabendo que estamos lutando por uma causa justa. Um dia a humanidade vai viver numa sociedade em que os homens serão aceitos na sua desigualdade. Haverá paz e justiça social para todos e não haverá nunca mais torturados nem torturadores.

Trecho final do depoimento “Sim, meu pai, também posso dizer: ‘Nossa luta não foi em vão’”, de Nilce Azevedo Cardoso em março de 1998

O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul se engaja nessa luta através de diversos meios. Uma delas é dando acesso ao seu acervo, que conta com os fundos da Comissão Especial de Indenização - que atuou entre 1998 e 2006 - e da Comissão Estadual da Verdade - que atuou entre 2012 e 2014 -, tendo elaborado catálogos seletivos sobre eles para subsidiar a pesquisa. No acervo multimídia da CEV encontram-se os registros da Audiência Pública “Mulheres na resistência à ditadura - relatos à Comissão Estadual da Verdade”, onde Nilce é uma das três mulheres que compõem a mesa e contribuem com seus depoimentos. Além disso, a oficina “Resistência em Arquivo: patrimônio, ditadura e direitos humanos” evidencia a potencialidade de se utilizar o patrimônio em benefício da construção de uma realidade democrática. O caso da Nilce é um dos sete processos da Comissão Especial de Indenização trabalhados por estudantes do ensino básico na Oficina desenvolvida pelo Programa de Educação Patrimonial - parceria entre UFRGS e APERS - desde 2013. O Arquivo proporciona o acesso e a difusão de documentos sobre um dos períodos mais trágicos da história brasileira, que - apesar das dores - precisa ser rememorado “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”!

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Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul