O preço de uma promessa não cumprida
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No dia a dia da indexação do Acervo do Poder Judiciário no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) não é raro encontrar processos crime de “defloramento”. Segundo o Código Penal de 1890, vigente até 1940, “defloramento” se qualificava como “tirar do lar doméstico, para fim libidinoso, qualquer mulher honesta, de maior ou menor idade, solteira, casada ou viúva, atraindo-a por sedução ou emboscada [...]” (BRASIL, 1890, art. 270). A sentença do “sedutor” variava entre 2 e 12 anos de reclusão, dependendo do status social da vítima e do agressor, das promessas feitas e se alguma das partes já era casada.
Por isso, o caso de 1927 no município de Encantado da solteira X contra o caseiro Y (nomes retirados em respeito à lei de proteção de dados) poderia ser “comum”: mais uma vez um homem que promete e não cumpre com sua palavra para “fins libidinosos” com uma “pobre ingênua moça”. Mas neste processo há uma particularidade que nos chamou a atenção: o processo não é pelo crime de “defloramento”, e sim uma “cobrança”, em que a credora exige 12 contos de réis, segundo ela mesma, pelo “prejuízo que lhe foi causado pelas consequências materiais da sedução e pela mancha lançada em sua honra” ou para que enfim o devedor se case com ela, como anteriormente prometido. A solteira X, segundo consta nos autos, era uma mulher de 23 anos de idade que possuía uma relação de “amor e sinceridade” com o Y desde seus 15 anos, conhecendo-o por trabalhar na casa comercial de seu vizinho. Sempre faziam par nos bailes, trocavam juras de amor por cartões postais e cartas (que constam nos autos do processo) e o casamento já tinha data marcada.
Para a infelicidade da moça, o dia do casório era sempre postergado, seja por dificuldades nos negócios de Y ou por viagens imprevisíveis a Porto Alegre. Porém as vontades “lascivas” do noivo não eram proteladas e no dia primeiro de setembro de 1926, depois de tantas súplicas e rogos deste, X convenceu-se a “deitar como casados fossem” com ele e assim foi deflorada. Poucos meses depois Y viaja a negócios para outra cidade e a noiva recebe a “terrível carta de 16 de novembro de 1926” quando ele anuncia que não voltará à cidade e rompe de vez a relação amorosa.
A menina “não consegue esconder sua emoção” e conta aos seus pais o que havia acontecido na noite de setembro. Imediatamente é levada à delegacia do município para fazer o corpo de delito onde se confirma sua desgraça e ainda descobre uma gravidez já no estágio de 4 meses. Como dito pelo escrivão do processo: “[...] como se não bastasse as chibatas do vilipendioso, ingrato e injusto ato, Y desviando-se, sem causa justa alguma, de seu compromisso [...]” envia ao pai de X uma carta dizendo (literalmente) que “casa quando bem entender” e pede para que ela não envie-lhe mais nada. Enfim, está consolidada a tragédia: uma moça solteira, grávida e com o casamento rompido no início do século XX.
Para provar a relação e esta sequência infeliz de acontecimentos, a autora coloca em anexo diversas cartas e cartões postais com declarações amorosas e com pedidos de desculpas de Y quando ele não consegue visitá-la. Em contraste, é anexado, também, as duas cartas enviadas pelo caseiro que concretizam o rompimento definitivo do casal.
Na defesa do rapaz, ele afirma que a credora, por ser maior de idade, estava “consciente da sua condição de mulher” e “entregou-se a seu partido” por vontade própria. A conclusão do juiz segue o mesmo raciocínio: a moça realmente não era “uma inocente vítima seduzida e sim a cúmplice espontânea, voluntária de uma paixão comum ou de uma voluptuosidade partilhada”, com isso a ação foi julgada improcedente. No fim do processo há uma inversão entre réu e vítima, entre credora e devedor: é absolvido Y, mas X é condenada (nestas palavras) ao pagamento das custas vencidas. Assim se encerra.
Este caso, sua linguagem e seu desfecho são sintomas das normas sociais do início do século XX. Os documentos do Judiciário são indícios de como funcionava a mentalidade e as condutas da época em que foram produzidos. Ao longo da leitura deste processo, a vítima é convertida em ré: ela cometeu o “crime" de “entregar-se” a uma paixão antes do casamento, de não “reconhecer sua condição de mulher”, como consta nos próprios autos. Ele tem direito ao prazer e de fugir de seus compromissos como pai, enquanto ela sofre as consequências sociais, econômicas e políticas dessas ações.
Por isso, não podemos encerrar esse texto sem fazer um adendo: a carga moral presente nos autos é resultado da desigualdade de gênero que ainda encontra ecos na atualidade. Segundo dados do IBGE de 2022, 43% das mulheres brasileiras já sofreram alguma violência física, sexual ou psicológica de seus parceiros e nos primeiros seis meses deste mesmo ano mais de 100 mil crianças foram registradas sem o nome de seu progenitor.
Processo judicial nº 53. Comarca de Lajeado - Vara Cível e Crime - Ação judicial de cobrança, 1927.