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Entrevista com Marcio Antônio Both da Silva - Parte 1

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APERS Entrevista
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Marcio Antônio Both da Silva graduou-se em História pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2002). É mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2009) e realizou estágio pós-doutoral em 2020. É docente, desde 2008, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, coordenador do GT História Agrária/ANPUH-PR e da Regional Sul do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Proprietas (INCT-Proprietas). Autor dos livros “Babel do Novo Mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Gradne do Sul (1889-1925)” (Editoras Unicentro e UFF, 2011) e “Caboclos e colonos: Encontros, ocupação e conflitos nas matas do Rio Grande do Sul (1850-1889)” (Editora Prismas, 2016). 

1) Marcio, você pode falar sobre sua trajetória profissional e sobre as principais pesquisas realizadas?

 Não é nada fácil escrever sobre a própria trajetória. Invariavelmente esse ato é acompanhado pela possibilidade de cairmos na chamada “ilusão biográfica”. De todo modo, trata-se de um exercício importante e, em alguns momentos, parece ser positivo parar e “ruminar” algumas questões do nosso passado. Contudo, para lembrar Nietzsche e suas “considerações intempestivas”, isso só tem sentido enquanto tal exercício servir para vida, pois ruminar em demasia é coisa que cabe apenas a bois e vacas, não a humanos.

A minha trajetória profissional inicia no interior do Rio Grande do Sul, no Curso de Licenciatura em História da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a Unijui. Em 1999, ingressei no Curso de História, um ano depois de ter passado no vestibular para o Curso de Direito. Juntamente com a mudança de curso, veio a transferência de Inhacorá/RS, onde residia com minha família, para Ijuí, bem como a incompreensão generalizada que acompanhou a decisão de querer ser professor e não um “doutor advogado”. Creio que uma ou duas semanas depois dessas mudanças, o Museu Antropológico Diretor Pestana, que é vinculado a Unijui, abriu vaga para seleção de estagiário. Me inscrevi e tive sucesso na seleção.

Marcio (1)
Marcio Antônio Both da Silva

Já na primeira semana de aulas ouvi falar da tal História Agrária. Foi na disciplina de “Metodologia da Pesquisa em História”, então ministrada pelo professor Paulo Zarth. Nessa aula, ele contou parte de sua trajetória, disse que a docência é uma das coisas mais importantes na vida de um historiador, mas que também existia o universo da pesquisa. Fiquei encantado e, ao final da aula, fui conversar com ele, queria saber mais sobre a essa história de fazer pesquisa. Ele me ouviu e convidou para participar da seleção que faria para implementar uma bolsa de Iniciação Científica. Foi aí que os temas da História Agrária se tornaram objeto de minha atenção e preocupação.

A história da graduação foi cheia de idas e vindas, de descobertas e experiências. Se tivesse que destacar rapidamente a principal dificuldade enfrentada, diria que foi a de pagar as mensalidades do curso. O cumprimento dessa tarefa exigiu muita paciência, um crédito educativo, negociações feitas ao final de cada semestre, empréstimos e uma dívida que, em algum sentido, me acompanha até os dias de hoje.

No último ano de curso, me envolvi com a produção do projeto de pesquisa apresentado para seleção de mestrado do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Quando comuniquei essa intenção aos meus pais, eles ficaram receosos, pois para eles era hora de “começar a trabalhar”, de “ganhar dinheiro”. O fato de não conhecer Porto Alegre os preocupava, também havia o problema do deslocamento e da estadia. Afinal, com que recursos financiaria as passagens e a minha permanência na cidade durante o período de seleção? Não fosse pelo apoio que recebi deles e pela ajuda de alguns professores, colegas, amigos e amigas, o projeto do mestrado não teria saído do papel. Não é possível citar o nome de todos que ajudaram, mas aqueles que porventura estão lendo estas linhas, fica registrado meu agradecimento.

Tive êxito na seleção de mestrado e o realizei sob orientação da professora Regina Weber. Comparativamente ao que havia vivido, a experiência do mestrado foi mais dolorosa. Saí da entrevista com a impressão de que não havia passado. Leitura que foi reforçada por alguns comentários que recebi e que tinham como fundamento o fato de eu vir de uma universidade do interior. Segundo essa leitura, isto me prejudicaria em relação aos outros inscritos, a maioria deles formados na própria UFRGS, vindos de outras grandes universidades ou supostamente “com mais experiência de pesquisa”. Considero que há certa verdade nessa interpretação, mas não pode ser tomada como um absoluto, especialmente na sua última parte.

Depois da seleção, vieram outras dificuldades. Dentre elas, a da estadia e da sobrevivência, a notícia era a de que eu não teria bolsa. Inicialmente segui os caminhos que percorri quando a coisa apertava no tempo da graduação, fiz um empréstimo. O processo de estabelecimento em Porto Alegre foi um tanto difícil, mas no começo do segundo mês recebi a notícia de que havia chegado uma nova bolsa e que ela seria destinada a mim. A partir disso, pelo menos financeiramente, as coisas se estabilizaram e, finalmente, pude me dedicar inteiramente à pesquisa.

O passo seguinte da trajetória foi o doutorado. Logo que finalizei o mestrado, fiz seleção no PPGH-UFRGS, mas não obtive sucesso. Porém, não desisti do desafio. No ano seguinte, prestei seleção no PPGH-UFF e, desta vez, com êxito. Por fim, a conquista mais atual dessa trajetória, foi o ingresso, via concurso público, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Quanto às principais pesquisas realizadas, nas respostas seguintes as descreverei mais detidamente.

 2) Qual é o papel das fontes primárias custodiadas no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul no seu trabalho?

 Poderia responder essa pergunta com uma única palavra: fundamental. Se minhas pesquisas trouxeram alguma novidade em termos da produção historiográfica sobre o rural no Rio Grande do Sul, isso só foi possível devido as trabalho de arquivo, especialmente ao mundo que conheci a partir da leitura dos Processos-crime que estão acervados no APERGS.  Todavia, para as pesquisas que realizei, outros dois acervos foram importantes: o do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e o da Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul.

Contudo, não é só de documentos que vive um arquivo e um pesquisador. Há uma sociabilidade de arquivo que não deve ser descartada e que considero muito importante. Pesquisadores, trabalhadores da instituição, curiosos, autodidatas, genealogistas, estudantes e sei lá mais o quê de tipos de gente compõem uma “fauna” particular e interessante. Além disso, existem os paramentos a serem usados para lidar com as fontes (luva, máscara, etc), os cuidados a serem tomados com os documentos, o ritual de solicitar a documentação, as fichas de consulta, a ansiedade e expectativa que o contato com as fontes produz, etc.

Também tem os cheiros, a poeira, as conversas paralelas, as pessoas que vão todo dia, aquelas que aparecem de vez em quando, alguns que você não conhece, mas ouviu falar e não quer conhecer, outros que você quer conhecer e acha um jeito de puxar conversa. Tenho notícias de amizades que se construíram, de paqueras que aconteceram e de namoros que começaram no ambiente do arquivo. Na verdade, o arquivo é um lugar de formação, de troca de ideias, de contatos e relações. Além disso, ele oportuniza espaços para discutirmos nossas pesquisas com nossos pares. Nesse sentido, pra mim foi muito importante a participação nas “Mostras de Pesquisa” organizadas pelo APERS.

Enfim, a importância do Arquivo Público e dos outros locais onde realizei pesquisa na minha trajetória não diz respeito só aos documentos que lá estão acervados e as descobertas que fiz nas fontes primárias, mas também ao universo da vida vivida no interior do arquivo. Isso envolve, tanto as pessoas que vão lá para pesquisar, como aquelas que lá trabalham e que são fundamentais para o desenvolvimento das pesquisas que fazemos, a estrutura do arquivo como um todo e os espaços de interação e discussão que lá se constituem.

 3) A que você atribui seu interesse pela História Agrária? Quais são seus compromissos políticos, acadêmicos e pessoais?

 Na época da graduação, como contei, fui bolsista de Iniciação Científica e, ao fazer a pesquisa, fui apresentado à palavra “caboclo”. Não só, mas aos diferentes significados que ela adotava a depender do tipo de fonte com o qual estava lidando, com a bibliografia que estava lendo, de quem estava envolvido na produção e do tempo em que o documento havia sido elaborado.

A minha história pessoal também influenciou no interesse pelo assunto. Sou oriundo de uma região de colonização e minha vida familiar tinha muita proximidade com o tema pesquisado. Minha mãe era descendente de imigrantes alemães e, meu pai, no contexto local era chamado de “brasileiro”, ou de outros nomes que buscavam destacar que ele não era “de origem”.  Da mesma forma, em algumas situações esse mesmo critério de diferenciação era aplicado, de maneiras diversas e diferenciadas, em relação a mim. Assim, ao realizar a pesquisa eu estava vivendo uma espécie de encontro comigo mesmo, com a história de minha família, do local onde nasci e também da trajetória de muitos de meus amigos e amigas.

Quem lê minha dissertação de mestrado, que tem por foco o encontro entre imigrantes e caboclos no povoamento da região de matas do Rio Grande do Sul na segunda metade do oitocentos, verá que no início dela consta a seguinte dedicatória: “ao caboclo pai, à mãe alemã e ao irmão e irmã, como eu, miscigenados”, lembro que, ao ler esse trecho, a primeira coisa que o meu pai falou com certa ênfase foi: “eu não sou caboclo!”. Essa frase me acompanha desde então, pois aprendi que tentar definir os “outros” com critérios que são meus ou que eu entendo como superiores ou mais completos por serem acadêmicos, científicos ou algo do gênero, exige não ignorar aquelas leituras e visões de mundo que não são as minhas.

Esse aprendizado, além de ter um conteúdo político, igualmente expressa um compromisso acadêmico que busco cumprir no meu dia a dia, seja dando aula ou fazendo pesquisa. Assim, o foco das minhas inquietações e pesquisas é conhecer e contar a história a partir das perspectivas dos “de baixo”, sempre procurando não desconsiderar o ponto de vista que eles próprios têm sobre si e sobre os processos nos quais estiveram ou estão envolvidos.

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